Dialogo com as Sombras 2ª PARTE - (20) O VINGADOR
20 - O
VINGADOR
Vingar-se
é ir à forra, punir alguém por aquilo que fez ao vingador e, por isso, vingança
é uma palavra-chave nos trabalhos de desobsessão e esclarecimento. Aquele que
se dedica a essas tarefas, precisa estudá-la a fundo, suas origens, suas
motivações, seus mecanismos e as soluções que lhe estão abertas.
É preciso
entender o vingador e aceitá-lo como ele se apresenta, se é que pretendemos
ajudá-lo, pois ele é, antes de tudo, um prisioneiro de si mesmo, através da
sua cólera e da sua frustração. Sua maior ilusão é a de que a vingança aplaca o
ódio, quando, na realidade, o alimenta e o mantém vivo. Sua lógica é, ao mesmo
tempo, fria e apaixonada, calculada e impulsiva, paciente e violenta, e sempre
implacável. Envolvido no seu processo, ele nem sequer admite o perdão, e é
capaz de perseguir sua vítima através de séculos e séculos, ao longo de muitas
vidas, tanto aqui, na carne, como no mundo espiritual.
Quase
sempre a vingança desdobra-se a partir de um caso pessoal, mas é comum
encontrarmos também o vingador impessoal, aquele que trabalha para uma
organização opressora. Ainda veremos isso mais adiante.
O
vingador observa, planeja e espera a ocasião oportuna e o momento favorável.
Não se precipita, mas não esquece: sempre que pode, interfere, ainda que seja
somente para espetar uma agulha em sua vítima indefesa.
Casos
tremendos e persistentes de obsessão vingativa resultam de amores frustrados,
traidos ou indiferentes. Paixões irrealizadas ou aviltadas despertam os mais
profundos sentimentos de revolta. De outras vezes, são crimes horrendos, como
assassinatos, espoliações, desonras, difamações, iniqüidades de toda sorte.
O
vingador é aquele que tomou em suas mãos os instrumentos da justiça divina. Não
confia nela, ignora-a ou não tem paciência de esperar por ela. Não sabe, ainda,
que o reajuste virá fatalmente, através da lei de causa e efeito. Todo aquele
que fere com a espada, há de ser ferido por ela, segundo nos advertiu o
Cristo. É certo, porém, que chegado o momento do resgate, a lei não exige que
alguém — seja quem for — tenha que empunhar a espada para ferir o irmão
devedor. Pode dar-se muito bem que ele se fira acidentalmente, caindo sobre um
instrumento, por exemplo, ou morrendo numa intervenção cirúrgica, em princípio
destinada a preservar-lhe a vida e, portanto, sem nenhuma intenção de cortar o
fio que mantém unidos corpo físico e perispírito.
Em
mensagem transmitida a Francisco Cândido Xavier, o “Irmão X” narra um episódio
desses, em que uma atrocidade praticada no ano 177, ao tempo de Marco Aurélio,
veio a ser cobrada pela lei, na tragédia de 17 de dezembro de 1961, na cidade
fluminense de Niterói. As simetrias são perfeitas. Não faltou um só elemento
nessa cobrança coletiva e despersonalizada. Aqueles que ajudaram a promover o
dantesco episódio de Lyon, há quase dezoito séculos, reuniram-se no circo de
Niterói. As mesmas correrias, o mesmo atropelo, a mesma passagem estreita por
onde alguns escaparam ao inferno. (1)
Tivemos,
certa vez, um caso de vingança que muito nos marcou. Alguém nos pedira ajuda
espiritual para uma jovem em constante estado de revolta, angústia e desajuste.
Colocamos seu nome em nosso caderno de preces e aguardamos. Sem muita demora,
duas ou três semanas após, compareceu ao grupo o Espírito indignado de seu
perseguidor, e a história desenrolou-se. Fora seu esposo
(1)
“Tragédia no Circo”. “Reformador” de março de 1962.
em
antiga existência, na Idade Média. Eram gente abastada e provavelmente da
nobreza, pois viviam num castelo. Seu drama é que, segundo ele, todos os dias,
através dos séculos decorridos, à mesma hora, ele abre determinada porta, já
sabendo o que vai encontrar: a cena inesquecível do flagrante de traição.
Matou-a e suicidou-se, segundo os deformados “códigos de honra” daquela época. No
entanto, a tragédia, longe de pacificar seu coração ou aplacar seu rancor,
ainda mais o exacerbou, porque sofreu horrores, não apenas por causa do
assassinato da esposa, como, também, em razão do horrendo crime do suicídio. As
dores que se seguiram consolidaram seu ódio, e, desde então, ele perseguiu o
Espírito da antiga amada. Tanto ele, como ela, tiveram outras vidas, nesse
ínterim, e ela estava novamente encarnada. Seu desejo, agora, era o de levá-la
ao suicídio (a jovem sofria realmente de impulsos suicidas), para tê-la
totalmente sob seu domínio. Ele sabe da sua responsabilidade e está bem
consciente de que responderá pelos novos crimes que pratica para vingar-se, mas
isso, para ele, não importa; o que interessa no momento — e esse momento dura
séculos! — éa vingança em si mesma. Por outro lado, os vingadores sempre se
esquecem, ou ignoram, que não há sofrimento sem motivo. No caso, se ele sofreu
traição, é porque, por sua vez, já traiu também, no passado. E como poderemos
negar indefinidamente o perdão de uma falta cometida contra nós — por mais
grave que seja — se também precisamos de que as nossas próprias faltas sejam
perdoadas?
Mas,
em situações como essas, há um curioso processo emocional que o doutrinador
precisa conhecer e empregar. É o paradoxo do ódio-amor. O vingador pensa odiar
uma criatura que ele ainda ama, a despeito de tudo. Se a odiasse simplesmente,
já a teria esquecido e não se manteria preso a ela durante tanto tempo. Parece
que lhe restou uma esperança de reconquista, dolorosa, tênue, inconsciente, mas
persistente.
No
caso sob exame, foi realmente o que os salvou do tenebroso drama. Lembrei-me
de perguntar se não tinham tido filhos. Realmente tiveram, duas criaturinhas
encantadoras, um casal, que ele ternamente dizia que eram dois anjos. Disse-me,
ainda, que atrás da porta seguinte, que ele se recusava sempre a transpor,
sabia que encontraria os filhos amados. Era preciso, no entanto, manter acesa a
chama rubra do ódio que, temia ele acertadamente, não poderia subsistir ao lado
da doçura do amor paterno, que o colocaria em uma situação de ternura que ele
queria evitar.
Na sessão
seguinte, trouxeram-lhe, por desdobramento, o Espírito da ex-esposa. Houve um
diálogo emocionado, do qual percebíamos apenas as suas falas. Sente-se vazio e
cansado. Não tem mais ânimo, nem para vingar-se.
— Você é
um trapo, e eu também — diz a ela. — Somos dois trapos. Vá em paz, que não a
perseguirei mais. Que Deus nos abençoe...
E
adormeceu.
É
extremamente complexo o processo da vingança. De certa forma, a lei universal
nos proporciona os elementos para exercê-la, porque, com sua falta contra nós,
aquele que nos feriu colocou-se à mercê da reparação, quase sempre dolorosa. E,
por isso, o vingador sente-se um instrumento da justiça divina, com todo o direito
de exercê-la, esquecido de que está reassumindo um compromisso que, em parte,
havia resgatado pela própria aflição que procura punir a seu modo. Por outro
lado, ao mesmo tempo em que ele se vinga, o ofensor libera-se pela dor, e
acaba, ao longo do tempo, por situar-se fora de seu alcance, enquanto ele, o
perseguidor, continua preso à sua problemática e, portanto, às suas angústias,
com um passivo enorme de faltas ainda por resgatar.
Ao
vingar-se, ele reabre o ciclo da culpa e expõe-se, por sua vez, novamente à
lei, que se voltará contra ele, alhures no tempo e no espaço.
Se
conseguirmos convencer o vingador da lógica férrea desse mecanismo, estaremos
em condições de ajudá-lo a libertar-se; caso contrário, ele seguirá escravo da
sua própria vingança, de vez que o livre-arbítrio, que lhe faculta a decisão de
agir, responde do mesmo modo, pelas conseqüências amargas e inelutáveis que provoca.
Não há outras opções: ou ele perdoa e segue à frente, ou insiste em cobrar, e
demora-se nas sombras do sofrimento.
Consideramos
diferentemente o obsessor e o vingador. Embora tenham muito em comum, nos seus
métodos de ação e no que poderíamos chamar de sua filosofia, eles diferem
sutilmente: obsessão muitas vezes é vingança, mas a vingança não é,
necessariamente, um processo obsessivo. Não sei se me faço entender. O Espírito
pode vingar-se longa e profundamente, sem desencadear obsessões à sua vítima,
empenhando-se apenas em criar-lhe dificuldades e dores, angústias e
frustrações. É que o Espírito, encarnado e desencarnado, que sofre um processo
vingativo, está, de certa forma, à mercê de seu algoz, porque ao errar expôs-se
ao reajuste; mas, mesmo devendo, perante a lei desrespeitada, poderá estar a
salvo da obsessão em si mesma. Assistimos, às vezes, à vingança indireta. Sem
poderem, por qualquer razão, atingir a vítima visada, os “cobradores”
alcançam-na fazendo sofrer aqueles que a cercam e que, por suas falhas pessoais
e por suas conexões espirituais com a vítima, são impiedosamente sacrificadas
ao ódio.
De um
pobre irmão, envolvido em antiquíssima trama vingativa, alguém ouviu dizer,
certa vez:
— Sou o
responsável por todas as dores que os teus vêm sofrendo há muito tempo...
Isto não
quer dizer que a vítima indireta seja invulnerável ou inatingível, pela santificação;
é que, empenhada em sincero e honesto processo de recuperação, dedicado à
prece, ao serviço ao próximo, à melhora íntima, coloca-se sob a proteção da
própria lei divina, que lhe concede um crédito de confiança, pois as culpas são
resgatadas também através do amor e não apenas da dor...
Atenção,
porém, para um pormenor: isto não significa que sofram os justos pelos
devedores, nem os pais pelos filhos, ou a esposa pelo marido. Não há sofrimento
inocente na justiça divina. O que acontece, nesses casos, é que o vingador
atinge a vítima (que se colocou fora de seu alcance) através daqueles que lhe
são caros, mas que também se acham em débito perante a lei, por motivos outros.
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