Dialogo com as Sombras 4ª PARTE - (29) TÉCNICAS E RECURSOS
QUARTA PARTE
29 - TÉCNICAS E RECURSOS
Dissemos alhures, neste livro, que
cada manifestação é diferente.
Nunca sabemos, ao certo, as intenções do Espírito que se aproxima, que
problemas nos traz, quais são suas características, qual a razão de sua
presença entre nós. Além do mais, a própria mediunidade não é um instrumento de
precisão, como um microscópio ou um relógio, que funcione, repetidamente, de
maneira previsível e controlável. O médium é um ser humano ultra-sensível, de
psicologia complexa, incumbido de transmitir o pensamento de um desencarnado,
mas está muito longe de ser mero aparelho mecânico de comunicação, como um
telefone ou um rádio, muito embora se fale em sintonia e em vibrações, quando a
ele nos referimos. Suas faculdades sofrem influências várias, do ambiente, do
seu estado de saúde, da sua problemática íntima, da sua fé ou ausência dela, do
seu interesse no trabalho, que pode flutuar, da sua capacidade de concentração,
da sua confiança nos companheiros que o cercam e, especialmente, no dirigente
do grupo e, obviamente, dos Espíritos manifestantes. E mesmo estes, que são
também seres humanos — não nos esqueçamos disto — variam suas apresentações,
de uma para outra manifestação, segundo suas próprias disposições.
Por outro lado, é preciso considerar,
também, que há diferentes formas de mediunidade: de incorporação, ou
psicofônica, de vidência, clariaudiência, psicografia, assim como há médiuns
que conservam sua consciência durante a manifestação, e médiuns que passam ao
que se convencionou chamar de estado “inconsciente”.
Devo
abrir um parêntese, para reiterar uma antiga opinião: de minha parte, julgo
inadequada a expressão “mediunidade inconsciente”. O Espírito do médium não
está em estado de inconsciência, simplesmente porque se afastou do seu corpo
físico, para cedê-lo ao manifestante. O máximo que se pode dizer é que a
consciência não está presente no corpo físico, ou, melhor ainda, não se manifesta
através do corpo material, temporariamente ocupado ou manipulado por entidade
estranha à sua economia. Se o médium mergulhasse, em Espírito, no estado de
inconsciência, o manifestante assumiria posse total do seu organismo e faria
com ele o que bem entendesse. Ao escrever isso, não estou esquecido do fato de
que há manifestações violentas, e muito livres, durante as quais os Espíritos
incorporados movimentam o instrumento mediúnico aparentemente à sua vontade,
fazendo-o gritar, dar murros, levantar-se, derrubar móveis, rasgar livros e
cadernos, e promover distúrbios semelhantes. A mediunidade sonambúlica
assemelha-se ao estado de possessão; mas, basta invocar esta, para sentir o
quanto essas duas manifestações diferem uma da outra, O possesso é realmente um
médium, pois oferece condições para que outro Espírito se incorpore nele, mas
o médium não é um possesso, no sentido de que o manifestante possa fazer, com
ele, tudo quanto entender, a qualquer momento e sem limite de tempo, ou
totalmente sem disciplina. Num grupo mediúnico em que a supervisão espiritual
seja firme e segura, a mediunidade sonambúlica pode e deve funcionar
perfeitamente, pois muitos Espíritos necessitam ser ligados a tais médiuns.
Eles provocarão distúrbios e agitar-se-ão bastante, segundo os recursos e
censuras que encontrarem em seus médiuns, mas não nos esqueçamos de que, não
apenas os guias espirituais do grupo estarão atentos, para que eles não cometam
desatinos, como o próprio médium estará presente e consciente, acompanhando
atentamente a manifestação, e pode, com certeza, interferir, para que o
Espírito manifestante não se exèeda, ainda que lhe permitindo considerável
faixa de liberdade.
Em casos
extremos os orientadores espirituais do grupo também adotarão medidas de
exceção, para conter as manifestações mais violentas. Já tivemos oportunidade
de presenciar alguns desses casos, em que o Espírito é virtualmente
“manietado”, por laços fluídicos invisíveis aos nossos olhos, mas de realidade
indiscutível para ele, porque o imobiliza instantaneamente.
*
Mas,
voltemos ao fio da exposição.
O grupo
deve estar, assim, perfeitamente preparado para inúmeras formas de
manifestação. Elas são imprevisíveis e inesperadas. O doutrinador experiente
saberá identificar prontamente os primeiros sinais da incorporação, quando o
Espírito começa a acomodar-se à organização mediúnica. É preciso, aqui,
lembrar que, freqüentemente, o Espírito manifestante é parcialmente ligado ao
médium, horas, e até dias inteiros, antes da sessão. Nestes casos, quando se
trata de um Espírito desarmonizado, embora a manifestação não se torne
ostensiva, porque isto implicaria admitir mediunidade totalmente
descontrolada, o médium sofre inevitável mal-estar físico, dor de cabeça,
pressão sobre a nuca, sobre os plexos, sensação de angústia indefinível e, até
mesmo, estado febril, prostração, irritabilidade, agressividade e vários outros
sintomas de desarmonização psicossomática. O médium experimentado e responsável
deve estar preparado para isso. Não se assuste, não se apavore, não tema e,
sobretudo, não deixe de comparecer ao trabalho, por causa dessas dissonâncias
psicofísicas, pois é isso mesmo que desejam os companheiros desequilibrados, ou
seja, afastá-lo do trabalho.
Esse
envolvimento pode dar-se também com os demais participantes do grupo que,
embora não dotados de mediunidade ostensiva, sofrem também terríveis pressões
dos irmãos perturbados. Um dos alvos prediletos dessas penosas aproximações é o
doutrinador, tenha ou não mediunidade ostensiva. O cerco em torno dele é
permanente, tenaz, implacável, impiedoso, porque acham, os companheiros
desencarnados doentes, que o neutralizando, acabam com o grupo, o que, muitas
vezes, infelizmente, é verdadeiro.
Esteja ou
não esteja o Espírito ligado ao médium antes da sessão, é certo que o
planejamento espiritual já tem as tarefas da noite distribuídas por
antecipação, e na seqüência que julgar mais conveniente ao bom andamento dos
trabalhos. Geralmente, cada médium tem seu próprio “estilo”, para indicar o
início da comunicação: colocar as mãos sobre a mesa, respirar com maior profundidade,
duas ou três vezes, agitar ligeiramente a cabeça ou o corpo, gemer, levantar os
braços, numa sematologia que o doutrinador, habituado a trabalhar com ele,
saberá identificar, a fim de iniciar o tratamento do irmão que se apresenta.
Às vezes,
o Espírito começa logo a falar, ou a esbravejar, mas, usualmente, ele precisa
de alguns segundos para apossar-se dos controles psíquicos do médium, e não
consegue falar senão depois de se ter acomodado bem à organização do seu
instrumento, o doutrinador deve aproveitar esses momentos para uma palavra de
boas-vindas, saudando-o com atenção, carinho e respeito. Em alguns casos o
Espírito somente consegue expressar-se a muito custo, em virtude de seu estado
de perturbação, de indignação, ou por estar com deformações perispirituais que
o inibem. De outras vezes, usando de ardis, ou preparando ciladas, mantém-se em
silêncio, para que o doutrinador se esgote, na tentativa de descobrir suas
motivações, a fim de tentar ajudá-lo, com o que ele se diverte bastante.
Em certas
ocasiões, vem ele revestido de um manto de mansidão e tranqüila segurança. Diz
palavras doces, assegura-nos suas boas intenções, dá-nos conselhos. Um deles,
certa vez, começou serenamente, com um apelo “aos corações bem formados”, numa
linguagem de pacificação e entendimento. Digo-lhe que estamos dispostos à
pacificação e ao entendimento, desde que ele venha em nome de Deus; mas, por
mais que se esforce — coisa estranha! — não consegue pronunciar o nome de
Deus, como eu lhe pedira. Por fim, explode em irritação e “abre o jogo”,
gritando que acabou a farsa. E derrama um arsenal de ameaças e intimidações.
Há os que
fingem dores que não sentem, ou mutilações que não possuem, como cegueira ou
falta da língua. Visam, com esses artifícios, a distrair nossa atenção do ponto
focal de sua problemática, ou simplesmente entregam-se ao prazer irresponsável
de enganar, mistificar, defraudar, ou então, como alguns me dizem, às vezes, de
esgotar o médium incumbido de dar-lhes passes. Riem-se muito dos nossos enganos.
Houve um que começou fingindo uma terrível dor de cabeça. Propus-me a ajudá-lo,
o que fiz com um passe, e ele começou a rir, divertindo-se com a minha falta de
inspiração; mas, por estranho que pareça, começou realmente a sentir uma dor
real, o que o deixou bastante impressionado.
Qualquer
que seja a abertura da comunicação, o doutrinador deve esperar, com paciência,
depois de receber o companheiro com uma saudação sinceramente cortês e
respeitosa. Seja quem for que compareça diante de nós, é um Espírito
desajustado, que precisa de socorro. Alguns bem mais desarmonizados do que
outros, mas todos necessitados — e desejosos — de uma palavra de compreensão e
carinho, por mais que reajam à nossa aproximação. Os primeiros momentos de um
contacto mediúnico são muito críticos.
Ainda não
sabemos a que vem o Espírito, que angústias traz no coração, que intenções, que
esperanças e recursos, que possibilidades e conhecimentos Estará ligado a
alguém que estamos tentando ajudar? Tem problemas pessoais com algum membro do
grupo? Luta por uma causa? Ignora seu estado, ou tem consciência do que se
passa com ele? É culto, inteligente, ou se apresenta ainda Inexperiente e
incapaz de um diálogo mais sofisticado?
Uma coisa
é certa: não devemos subestimá-lo. Pode, de início, revelar clamorosa
ignorância, e entrar, depois, na posse de todo o acervo cultural de que dispõe.
Dificilmente o Espírito é bastante primário para ser classificado, sumariamente
como ignorante. Nossa experiência acumulada é muito mais ampla do que suspeitamos.
Dentre os
muitos casos assim, lembro-me de um, particular-mente grato ao meu coração,
porque o companheiro, depois de recuperado, passou a colaborar em nossas
tarefas, com uma dedicação
Comovedora.
Ao
apresentar-se, tinha dificuldade em expressar-se, usando o vocabulário limitado
de uma pessoa de pouquíssima instrução. Aos Poucos, a sua história foi se
desenrolando. Fora um homem de cor, e vivera em pobreza extrema, pelas ruas do
Rio de Janeiro, cujos bairros do subúrbio conhecia muito bem. Num infeliz acidente
de trem, perdera uma perna e,
mesmo no mundo espiritual, ainda caminhava de muletas. Quando lhe disse que não
precisava mais de muletas, podendo caminhar sem elas, ele respondeu que já o
experimentara, mas levara um tombo.
Esse
querido amigo — que nos deu o nome de Eusébio — esteve aos nossos cuidados por
longo tempo. Por detrás de sua pobreza verbal, do seu limitado vocabulário e
das suas curiosas expressões populares, sentíamos nele, não obstante, um senso
filosófico muito profundo da vida e uma das mais lindas e autênticas
humildades que já vi. Foi, aliás, o que o salvou e, paradoxalmente, o que
contribuiu para que sua recuperação demorasse um pouco mais. Tentarei explicar.
Era evidente, para nós, que chegara ao fim da sua
provação maior, e estava em condições de reencetar sua escalada evolutiva. Uma
noite, emocionado até às lágrimas, conseguiu dar os primeiros passos sem a
“muleta”, o que, para ele, na sua linguagem colorida, “não era barbante podre,
não”. Suas observações eram sempre judiciosas, sua humildade uma constante, e
sua afeição e gratidão por nós, algo patético, em que expandia o coração
amoroso e pleno de generosidade. Nossos orientadores espirituais começaram a
utilizá-lo em pequenas tarefas auxiliares, com o que ele muito se alegrou. No
entanto, a despeito de sua indubitável vivência espiritual, continuava a
falar-nos na linguagem do Eusébio, simples, popular, sem atavios, mas
conseguindo claramente expressar nobres pensamentos e demonstrar bastante
segurança.
Certa
noite, devido à ausência de grande número de companheiros, a sessão alcançou
um clima de maior intimidade, o que talvez lhe tenha favorecido a superação de
suas inibições interiores, para falar-nos de maneira inusitada, revelando o
que de há muito entrevíamos nele: conhecimento, experiência, enfim, uma
respeitável bagagem espiritual, dosada e sustentada pela sua aflorante
emotividade. Pelo que depreendemos, tivera um passado de brilho e destaque,
aprendera a dura lição da humildade e tinha certo receio de abandonar sua
obscura posição espiritual, tão dificilmente conquistada, e recair nos velhos
processos da vaidade. Mas, graças a Deus, estava curado o querido companheiro.
*
Esse
caso, aqui, veio para ilustrar algumas realidades espirituais que não podemos
ignorar, sem lamentável prejuízo para o Espírito manifestante. Exemplifico:
suponhamos que, ao recebê-lo, o grupo o tratasse com superior condescendência e
o despedisse com uma palavra de desesperança. Onde e quando teria ele outra
oportunidade de entendimento e recuperação? E onde, e quando, nós próprios
teríamos a alegria de granjear uma afeição e uma dedicação iguais àquela?
Às vezes,
também, embora o grupo não realize nenhum trabalho de Umbanda, surgem
Espíritos acostumados a essas práticas. Suas primeiras manifestações seguem,
quase sempre, a técnica a que estão acostumados. Aguardemos pacientemente, para
saber o que desejam. Nada de expulsá-los sumariamente. Se os
companheiros do mundo espiritual permitiram sua manifestação, num grupo
estritamente espírita, orientado pelos ensinamentos de Allan Kardec, haverá
alguma razão para isso.
Aqui,
também, temos uma experiência pessoal.
Ao
manifestar-se, ele traçava infalivelmente o seu sinal, sobre a mesa, e começava
a doutrinar-nos. No seu terreiro, dizia, também se fazia o bem, e muito mais
facilmente. Éramos uns “cartolas” grã-finos, reunidos em apartamento de luxo.
Ele estava muito bem lá, e não queria nada conosco. -. etc., etc.
Provavelmente, não sabia ainda (ou pelo menos não revelara) por que estava ali,
entre nós.
Por muito
tempo o diálogo se manteve nesse tom; mês após mês. Só muito mais tarde a
história se desvendou. Tivera uma longa e penosíssima experiência, ao correr
dos séculos, desde que, em impulsos tresloucados, no século 16, envolvera-se em
erros lamentáveis, no campo político-religioso. Fora, então, um homem de
grande magnetismo pessoal, de vigorosa inteligência e de muita cultura
filosófico-religiosa.
— Fui um
verdadeiro demônio — me disse ele, certa vez, profundamente contristado.
Confessou,
também, que, há quatro séculos, perdera-nos de vista — a mim e a outro
companheiro do grupo, mas a afeição por nós lá estava, e isso o salvou, graças
a Deus. Parece que sua intenção inicial era arrastar esse companheiro — o
médium através do qual se manifestava — para os terreiros de Umbanda, o que
este recusava terminantemente, por divergência doutrinária insuperável.
Não nos
contou ele toda a sua terrível saga, mas uma só narrativa bastou. Tivera uma
existência no Brasil, como escravo negro. Perguntei-lhe onde fora isso e ele me
respondeu:
— A gente
nem sabia onde estava. Era levado de um lugar para outro, como bicho.
Parece
que foi nessa existência que se familiarizou com a utilização dos recursos da
Natureza, para curar. Manipulava bem esses fluídos naturais e devia trazer, no
Espírito, alguma antiga experiência na Medicina, pois sempre nos demonstrou
ser conhecedor seguro das mazelas do corpo humano e dos métodos de minorá-las.
Em mim mesmo, por meio de passes, colocou um “remendo” na coluna, que ameaçava
quebrar-se por causa de uma rara e incurável moléstia óssea.
Também este integrou-se no nosso
grupo, feliz em poder servir-nos, com seus conhecimentos e seu coração, curado
de antigas mazelas, que tanto o infelicitaram. Era particularmente ativo e
estava sempre presente para restabelecer o tônus vibratório dos médiuns, quando
a manifestação era por demais penosa. Incorporava-se, logo em seguida, e,
enquanto falava tranqüilamente, dava passes no seu médium, que despertava
lúcido e livre dos resíduos vibratórios do Espírito desarmonizado que o
precedera. O nosso bom e querido Justino, a essa altura, abandonara seus
propósitos de continuar a freqüentar os terreiros. Era quem nos dava um passe
final, quem fluidificava a nossa água e quem tratava das nossas pequenas
mazelas orgânicas, dando-nos conselhos e passes e, vez por outra, a “receita”
de um chá caseiro. Manteve sua maneira algo rude de falar, sem floreios e
artifícios de linguagem. Talvez buscasse esconder suas emoções, sua gratidão e
sua alegria, pelo reencontro com os velhos companheiros, que, segundo ele,
haviam se distanciado na sua frente, o que não é verdadeiro.
Certa
vez, num impulso rápido de inspiração, identifiquei seu Espírito nas lutas
dramáticas da Reforma Protestante, mas respeitamos seu anonimato e ele nunca
mais deixou de trazer-nos a vibração do seu amor fraterno e do seu
reconhecimento humilde. Muito devemos a esse querido companheiro, não somente
pelo que fez por nós, mas pelas inesquecíveis lições que nos trouxe. Seria
difícil distinguir a gratidão dele da nossa, e não é essa mesma a essência
imortal do “Amai-vos uns aos outros”?
*
Assim, a
primeira regra do diálogo, com os nossos irmãos em crise, é esta: paciência e
tolerância. Toda conversa, com eles, éum permanente exercício dessas duas
virtudes. As primeiras palavras são de importância vital; são, às vezes,
decisivas, e podem constituir a diferença entre uma oportunidade de pacificação
ou a alienação do companheiro por mais um tempo, indeterminado, em que ele
continuará a buscar alhures o que não encontrou em nós:
compreensão
para os seus problemas e suas angústias. Muita coisa vai depender, no
desenrolar do trabalho, da maneira pela qual recebemos os nossos irmãos em crise. Nunca é demais
lembrar e insistir: eles precisam de nós, justamente porque não conseguem sair
sozinhos das suas dificuldades, das suas perplexidades, dos seus sofismas, da
sua auto-hipnose. Mas nós, por igual, precisamos deles, porque nos trazem
lições, porque nos ajudam na prática da lei suprema da solidariedade que, a seu
turno, nos libertará também.
E quantas
vezes não são eles aqueles mesmos que causam desequilíbrios em nós próprios,
ou obsessões naqueles que nos cercam: parentes, amigos, colegas de serviço,
companheiros de jornada, enfim?
Além disso,
não podemos despachá-los, mal enunciaram as primeiras palavras, quando nem
sequer sabemos ainda de suas motivações e de suas dores. Não esperemos,
jamais, uma expressão inicial sensata e equilibrada, amorosa e tranqüila, da
parte daqueles que se acham desarmonizados. Se assim fosse, não precisariam
de nós: já teriam encontrado seus próprios caminhos. Esperemos, isto sim, uma
eloqüente manifestação de revolta, rancor, desespero, aflição, desencanto, ou
perplexidade, segundo a natureza dos problemas que os abrasam. Contemos com
mistificações e ardis, com falsidades e subterfúgios, com ódio e agressividade,
com ignorância e má-fé; em suma, com a dor do Espírito aturdido pelo impasse
que criou dentro de si mesmo. É claro que o primeiro impulso de hostilidade,
de um Espírito assim, tem de ser contra nós, que o fustigamos, tentando
obrigá-lo a mover-se. Ele está parado no tempo e no espaço, preso à sua
problemática, empenhado numa tarefa que julga do maior relevo e importância; e
aparece um grupo, como o nosso, para tentar arrancá-lo daquilo que constitui o
seu mundo, a sua razão de ser. Não é ele quem nos incomoda e fustiga; somos nós
que o agravamos, com a inadmissível tentativa de fazê-lo desistir dos seus
propósitos. Como? Então não vemos que ele não faz mais do que cobrar uma
dívida, ou trabalhar pelo restabelecimento da Igreja do Cristo, ou funcionar
como juiz, num processo legitimamente constituído, em que a culpa é tão clara?
Que petulância! Que impertinência!
É preciso
deixá-los falar, pois, do contrário, não poderemos ajudá-los. É necessário
conhecer a sua história, suas motivações e suas razões. E ainda que relutem,
demorem e usem de mil e um artifícios, eles acabam revelando a razão de sua
presença no grupo. O longo trato com eles nos ensina que têm um hábito peculiar
de “pensar alto”. Isto se deve a um mecanismo psicológico irresistível, do
qual muitas vezes eles nem tomam conhecimento, e no qual, mesmo os mais hábeis
e ardilosos deixam-se envolver. É que o médium lhes capta o pensamento, e não a
palavra falada. Se o médium se limitasse a transmitir-lhes a palavra, mesmo
assim, eles acabariam por revelar as suas verdadeiras posições, embora pudessem
sonegar a verdade por maior espaço de tempo; mas é do próprio dispositivo
mediúnico converter, em palavras e gestos, aquilo que o Espírito elabora na sua
mente. Eles não conseguirão, por muito tempo, ocultar as verdadeiras causas da
sua dor e a razão da sua presença, pois é isso, precisamente, que os traz a
nós. Essas causas estão de tal forma gravadas nos seus Espíritos, que
constituem o centro, o núcleo, em torno do qual gira toda a personalidade e
agrupam-se os problemas mais críticos e mais urgentes. Se conseguirmos desfazer
aquele núcleo, que funciona como verdadeiro centro de aglutinação, a
personalidade reagrupa-se em novos equilíbrios redentores. Insistimos, pois, em
afirmar que o médium traduz em palavras o que ele sente no Espírito
manifestante: suas emoções, seu temperamento, seus problemas, suas desarmonias,
ao mesmo tempo em que lhe reproduz os gestos, e a voz alteia-se ou sussurra,
reflete ódio ou desprezo, ironia ou, amargor, perplexidade ou aflição. Se assim
não fosse, teríamos que falar com cada Espírito na sua própria língua, ou
seja, na língua que ele falou por último, na sua mais recente encarnação, e
todo médium precisaria ser xenoglóssico.
É certo,
pois, que acabarão por revelar a razão de sua presença entre nós, e depois, o
núcleo de suas dificuldades maiores, muito embora seja isto o que mais parecem
temer.
Num caso
desses, o Espírito fez um longo circunlóquio filosófico-teológico. Era
excelente argumentador e dialético de muitos recursos. Fugia a qualquer
referência pessoal, a qualquer palavra que pudesse levar-nos a descobrir suas
motivações. Ao cabo do diálogo, que se estendeu por mais de uma sessão, ele não
se conteve mais: seu ódio era contra mim. Seguia meus passos desde que “tua
maldita mãe te colocou no mundo”, e a dúvida que havia entre nós reportava-se
ao tempo da Segunda Cruzada. Pretendia transformar o meu lar num hospício,
disse ele, pois eu cometi contra ele um crime do qual jamais me perdoaria. Se
pudesse, me destruiria...
Em suma,
deixa cair os véus com os quais tentou, de início, cobrir as razões de sua
presença entre nós. Veio para isso mesmo, mas relutou o quanto lhe foi
possível, pois sabia muito bem que, chegados ao cerne do problema, estaríamos
em melhor posição para o ajudar a resolvê-lo. No fundo, ele estava mesmo era
cansado de sofrer porque a vingança e a perseguição tanto sacrificam o
perseguido, quanto o perseguidor.
Em outro
caso» depois de muito debatermos as questões suscitadas entre nós, ele deixou
escapar o fragmento de uma palavra reveladora.
A certa
altura do diálogo, lembro a ele a inesquecível palavra de Gamaliel, perante o
Sinédrio:
— Não aconteça que
vos encontreis lutando contra Deus!
Percebi
que a citação o atingiu mais profundamente do que ele talvez desejasse.
Resmungou que nada tinha com Gamaliel, mas evidentemente estava envolvido no
doloroso “processo da cruz”, e disse:
— Eu era um sol...
Estacou
subitamente e comentou consigo mesmo:
— Veja o que eu ia
dizendo. Sempre fui um soldado...
Na
verdade, desde a sua primeira manifestação, uma ou duas semanas antes, ouvia
sem cessar um alarido de vozes que berravam coisas confusas e um tilintar de
armas que ele se recusava a identificar. Participara, pois, como soldado
romano, ou do próprio Templo, da penosa missão de aprisionar o Cristo, ou de
conduzi-lo, ao longo da sua inesquecível via crucis. Era esse o problema que
ele mais temia revelar, mas que precisava enfrentar, para libertar-se.
Este caso
encerra outra lição importante. Chamemo-la a lição do arrependimento
construtivo, ao qual há referências alhures, neste mesmo livro.
Para não
transformar o tema numa composição literária, baste-nos lembrar que há dois
tipos de arrependimento: o positivo e o negativo. O primeiro, ajuda-nos a
reconstruir logo o que destruímos, a refazer o que não podemos mais desfazer; o
segundo, mantém-nos paralisados à beira do caminho, enquanto nossos companheiros
e nossos amores seguem à frente. Estacionamos precisamente porque nos falta
coragem para enfrentar o olhar severo da própria consciência. É verdade,
estamos envergonhados, temerosos e angustiados, mas por que demorar-nos no
arrependimento, cruzarmos os braços e esconder-nos, como um caramujo, dentro da
carapaça das ilusões? O arrependimento somente se dissolve no trabalho
construtivo. Incontáveis multidões, no entanto, tentam fugir de si mesmas,
ignorando seus próprios fantasmas interiores. A culpa existe em nós; impossível
negá-lo, pois o erro já está cometido mesmo. O que temos de fazer, agora, não é
fingir que ela não existe, porque é justamente esse fingimento, essa fuga, que
nos mantém presos, detidos, marcando passo, vendo a multidão passar por nós, em
busca da paz.
Esse
mecanismo tem que ser bem compreendido por aquele que se propõe ajudar
Espíritos endívidados. É claro que também somos endívidados, talvez tanto
quanto eles, ou até mais. Precisamos, no entanto, mostrar-lhes que estamos
fazendo alguma coisa, lutando, enfrentando os nossos espectros interiores, as
censuras da consciência, as cutiladas do remorso, conscientes de que o nosso
erro está presente em nós, e não podemos voltar sobre nossos passos, para
desfazê-lo. Podemos, no entanto, e devemos, e temos que reconhecer, a força da
sua presença em nós. Sem
essa abertura corajosa, não dá sequer para começar. E, como diz o provérbio
chinês: a caminhada de 100
quilômetros começa com o primeiro passo.
O
doutrinador precisa estar muito atento a esses sinais reveladores. Tentar
identificá-los é sua tarefa, mas que o faça com muito tato, paciência e
compreensão. Ninguém gosta de revelar suas fraquezas, seus erros, seus crimes,
suas mazelas e imperfeições. Nada de coações, de pressões, de imposições.
Espere com paciência, busque com tranqüila perseverança, que a verdade virá.
Lembre-se de que ela se encontra ali mesmo, na memória daquele irmão que sofre.
Ele a dirá, se é que chegou a sua hora de mudar de rumo. Basta um pouco de
ajuda, habilidade, tato e paciência. É preciso, também, que tenhamos a
faculdade da empatia, ou seja, apreciação emocional dos sentimentos alheios.
Veja bem: apreciação emocional. É necessário que as nossas emoções estejam
envolvidas. Se apenas assistimos às agonias de um Espírito que se debate nas
suas angústias, não temos empatia; somos meros espectadores. É preciso
aprender a vibrar com ele, sofrer com ele, compreender sua relutância em
abrir-se, aceitar seu temor em descobrir suas feridas, mas, a despeito de tudo
isso, ajudá-lo a descobri-las...
Estejamos
certos, porém, de que a resistência será grande, a luta interior que
presenciaremos será dolorosa, difícil, e muitas vezes o Espírito recuará
novamente, temeroso, acovardado, sentindo-se ainda despreparado.
Neste
caso, ouvimos sempre uma destas frases:
— Ainda
não estou preparado... Espere um pouco mais... De outra vez... Deixe-me. Dê-me
mais tempo. Preciso pensar...
Junto de
um companheiro particularmente agoniado, presenciamos a dura batalha entre os
lampejos da esperança de paz e os apelos de seu insaciado desejo de vingança:
iria, agora, abandonar tudo aquilo, que era a motivação de sua vida, e o tinha
sido por séculos e séculos? Entregar-se à dor? Abandonar a sua vítima? E a sua
vingança? E, no entanto, ninguém melhor do que ele sentia a inadiável
necessidade de uma atitude de renúncia, embora sabendo que apenas trocava uma
dor por outra.
O doutrinador não o forçou. Limitou-se a dizer,
com o coração aberto à compreensão e ao afeto:
— A
decisão é sua. Claro que você pode continuar a fazer isso. Deus, que amparou
aquele a quem você persegue por tanto tempo, há de continuar amparando-o. Mas,
e você? É isto que lhe convém? É isto mesmo que você quer?
*
Estamos,
talvez, nos antecipando. Falávamos do primeiro contacto com o Espírito
manifestante. Creio que foi possível deixar bem claro o quanto é importante
essa primeira aproximação. Nela se definem muitas coisas sutis, que podem
decidir o caso, de uma forma ou de outra, libertando o Espírito, ou
confirmando-o na sua dor, por mais alguns anos, ou séculos.
Repitamos:
o diálogo com os nossos irmãos desarvorados é um exercício de tolerância e
paciência. E acrescentamos: muito amor.
À medida
que ele se desenrola, estejamos atentos, mantenhamo-nos compreensivos e
discretos. É uma tentativa de entendimento, não uma discussão, uma contenda,
uma disputa. O que interessa, neste momento, não é “ganhar a briga”, mas
estudar com empatia (novamente a palavra mágica) o drama que aflige o companheiro.
Não importa que ele leve a melhor no debate, que nos agrida, ameace e procure
intimidar-nos. Freqüentemente ocorre ser ele muito mais treinado, em pelejas
dessa categoria, do que o doutrinador. Foi tribuno, orador, escritor,
pensador, teólogo; enfrentou grandes debatedores, argumentou em causas
importantes, adquiriu cultura e aprendeu a manejar a palavra, como poucos. Leva
nítida vantagem sobre o doutrinador que, por mais bem preparado que seja, está
contido pelos dispositivos da encarnação e, na maioria das vezes, ignorante de
fatos importantes, que o Espírito conhece e manipula com inteligência e
acuidade. Seria, pois, ingênua e perigosa imprudência tentar superá-lo numa
discussão. Não se esqueça, por outro lado, de que não pode deixar o Espírito
falando sozinho, a não ser em condições muito especiais, que a intuição do
doutrinador deverá indicar, O Espírito precisa ser atendido com interesse,
muito mais que com simples urbanidade. Não apenas se encontra na condição de
visita, por assim dizer, pois veio até a nossa casa, como ele ficará ainda mais
irritado, e difícil, se o recebemos com fria e polida cortesia, ou, pior ainda,
quando nos deixamos envolver pela sua agressividade e respondemos com idêntica
hostilidade, que o aliena cada vez mais.
Estejamos
certos de encontrar sempre, da parte deles, o desejo de nos arrastar à
discussão azeda e violenta. É o clima que convém aos seus propósitos. Na sua
dolorosa e compreensível inconsciência, usarão de todos os recursos ao seu
alcance para atingir esse fim. Quantas vezes tenho ouvido agressões iniciais, e
reiteradas, como estas:
— Fale
como homem! Não suporto essa voz melíflua! Será que você não tem sangue nas
veias? Não seja covarde! Está com medo?
Calma,
paciência, tolerância. Não altere a voz, não se deixe irritar, não reaja da
maneira que ele espera, pois assim não conseguirá ajudá-lo. Resista, mas
resista mesmo, ao impulso de “responder-lhe à altura”, mesmo que tenha o
argumento que parece decisivo. Se o tem mesmo, tanto melhor. Use-o com a mesma
voz tranqüila e serena. É muito difícil um diálogo áspero entre duas pessoas,
quando somente uma grita, O gritador acaba por perceber que está fazendo papel
ridículo e usando violência desnecessária, que cai num vazio, que o aturde e o
traz à razão.
De vez em
quando, se ele insistir em falar em altos brados, faça-o compreender, em voz
baixa e tranqüila, que não é preciso gritar. Que a gente somente grita quando
não tem razão. Ele acabará por convencer-se da justeza dessa observação. Se o
doutrinador cai na tolice de gritar-lhe de volta, o clima torna-se insustentável
e a situação difícil de ser contornada. Procure dirigir a conversação para o
terreno pessoal, certo de que o Espírito está negaceando, precisamente para
evitar cair nesse campo, que sabe ser o mais “perigoso”, por ser o único revelador
do núcleo inte
rior de sua
problemática. Mas, não o force. Espere o momento oportuno. Aguarde
pacientemente. Siga-o na conversa, sem aumentar sua irritação, sem atritar-se
com ele. Não é importante superá-lo na troca de idéias. Você não está ali para
provar que é mais inteligente do que ele, nem mais culto, ou eticamente melhor
do que ele: você está ali para ajudá-lo, compreendê-lo e servi-lo. Não há razão
alguma para pensar que você é um Espírito redimido, e ele um réprobro enredado
nos seus crimes. As leis morais, o Evangelho do Cristo e a prática espírita nos
repetem, de mil formas, a mesma lição: a de que são os próprios pecadores que
se ajudam mutuamente: o coxo servindo ao cego, o cego ao mudo e, sobre todos
nós, a infinita misericórdia de Deus, a sabedoria ilimitada do Cristo e a
assistência incansável de nossos irmãos mais experimentados, que se alongaram
mais profundamente no caminho da luz.
*
É certo,
ainda, que, durante esse diálogo difícil — em que, tantas vezes, o doutrinador
tem de aceitar o papel de um pobre, infeliz débil mental, covarde, hipócrita,
medroso —, haverá mistificações, propostas, bravatas, ameaças, ironias,
tentativas de intimidação. Mantenhamos o equilíbrio, atentos, porém, ao fato
de que humildade não quer dizer submissão e aceitação sem exame de tudo quanto
nos diz o Espírito manifestante, pois ele se encontra diante de nós exatamente
para que tentemos convencê-lo de seus enganos, fantasias e deformações
filosóficas, teológicas e psicológicas. É a sensibilidade do doutrinador que
vai indicar em que ponto e em que momento interferir.
Enquanto
esse momento não chega — e geralmente ele não ocorre, mesmo, na fase inicial do
diálogo — esperemos com paciência, atentos às informações que o Espírito nos
fornece, dado que é com elas que vamos montando o quadro que nos mostrará o
perfil psicológico do comunicante. Atenção com os pormenores que pareçam
irrelevantes: uma referência passageira, o tom de voz, uma lembrança fugaz, uma
observação aparentemente sem importância. Tudo serve para compor o quadro.
Lembremo-nos de que o perfil que procuramos é importante, é essencial ao
entendimento da personalidade daquele irmão. Embora dificilmente admita, ele
precisa da nossa ajuda. Se o mencionarmos, porém, ele replicará com toda a
veemência, que de forma alguma precisa de nós. Está muito bem como está. Não
poucos serão os que, ao contrário, nos farão propostas e nos dirão as mais
estranhas bravatas.
Falam-nos
do enorme poder de que dispõem — e muitas vezes isso é estritamente verdadeiro
— e das “providências enérgicas” que tomarão contra nós.
Um deles
me anunciou que iria “botar fogo” no grupo. E me perguntou:
— Como é
que você quer morrer? Você fecha o grupo espontaneamente, ou nós teremos que
fazê-lo?
Outro me
Informou que tinha “ordens do chefe” para remover-me do seu caminho, se
possível, sem me ferir, mas se isso fosse impraticável, então, era para
arrebentar tudo a dinamite, porque a pedra tinha que ser afastada, para que
eles passassem.
Um
terceiro, cujo aspecto truculento e olhar terrível o médium descreveu antes que
se incorporasse, também pronunciou sua ameaça, apoiada numa bravata: estava
disposto a afastar-me de qualquer maneira, se possível por bem, pois não
desejava causar-me dano pessoal, a não ser que a isto fosse obrigado. Confessa,
mesmo, que tem por mim certa afeição e — coisa estranha, meu Deus! —sinto por
ele, também, uma inexplicável ternura que, não sei de onde nem de quando, vem
das telas infinitas desse continuo espaço-tempo em que vivemos. Fala-me da sua
glória, na qual insiste. Sonha grande, mas não hesita diante da violência, para
realizar os seus sonhos de domínio. Já no passado cometeu, várias vezes, esse
engano, embora projetando-se, na História, como um temível conquistador. A
essa altura, já estamos conversando, como dois velhos amigos que se
reencontraram, e não como um agressivo guerreiro, surgido dos registros
históricos, com um mero doutrinador espírita, do século XX. Ao falar das suas
grandezas, me diz, de maneira dúbia:
— Você
preferiu outros caminhos...
— Sim, é
verdade — digo-lhe eu —, preferi a obscuridade.
É isso,
precisamente, que ele não entende. Como pode alguém desejar viver na
obscuridade, se pode, pelo menos, tentar a glória?
Nem
sempre, porém, essas bravatas e ameaças terminam assim, amistosamente, num
reencontro de dois seres que seguiram rotas diferentes, mas continuam a
estimar-se e respeitar-se.
Usualmente,
o rancor está firme atrás delas, e pelo menos algumas das ameaças
concretizam-se mesmo, sob variadas formas: pequenos incidentes na vida diária,
mal-entendidos entre familiares, doenças inesperadas, aflições maiores.
O
problema das ameaças merece alguma digressão mais ampla, porque ele tem
implicações muito sérias no trabalho de doutrinação.
Em
primeiro lugar, como nos disse um Espírito amigo, certa vez, não podemos colher
rosas, sem jamais nos ferirmos nos espinhos. Quanta verdade nesta imagem! Por
mais estranho que nos pareça, a uma observação superficial, os Espíritos mais
terrivelmente perturbados e desarmonizados guardam em si incrível potencial
para as realizações futuras — aptidões, experiências e qualificações
inesperadas, preciosas, e, por mais fantástico que nos pareça, uma enorme
capacidade de amar.
Um deles,
muito difícil, agressivo, poderoso, quase inabordável, não pôde conter sua
gratidão, depois de desperto: beijou, com emoção e respeito, a mão de seu
aturdido doutrinador, o mesmo que, ainda há poucas semanas, ele daria tudo para
destruir.
No
trabalho mediúnico de desobsessão, temos, pois, que contar com contratempos,
ferimentos e angústias, especialmente se deixarmos cair as nossas guardas.
Isto é válido para todo o grupo, e não apenas para o médium, ou para o
doutrinador. O cerco aperta-se, ainda que estejamos guardados na prece e na
vigilância.
— “Vigiai
e orai” — disse o Cristo, segundo Marcos — “para não cairdes em tentação, pois
o espírito está pronto, mas a carne é fraca.” (Marcos, 14:38.)
O
Espírito deseja a libertação, teme novas quedas, sonha com a paz, sofre a
ausência de afetos muito profundos e, de certa forma, está pronto para a vida
em plano melhor e mais purificado, ou, pelo menos, não tão difícil e grosseiro
como este mundo de provas em que vivemos; mas, no fundo, mergulhado no corpo
físico, que o sufoca, sua vontade debilita-se e a fraqueza da carne vence as
melhores intenções. Os seres desencarnados inferiores que nos vigiam, nos
espionam e nos assediam, sabem disso, tão bem ou melhor do que nós, e, enquanto
puderem, hão de reter-nos na retaguarda, pelo menos, como disse um amigo
espiritual muito querido, para engrossar as fileiras dos que estão parados.
Mesmo com
toda a vigilância, e em prece, continuamos vulneráveis. E “eles” sabem disso:
quando o esquecemos, eles nos lembram:
— Você pensa que é
invulnerável?
Quem
poderá responder que é? E as nossas mazelas, os erros ainda não resgatados, as
culpas ainda não cobradas, as infâmias ainda não desfeitas? Contudo, temos que
prosseguir o trabalho de resgate, a despeito dos espinhos das rosas, das
ameaças e, logicamente, de um ou outro desengano maior. É preciso estarmos, no
entanto, bem certos de que, em nenhuma hipótese, sofreremos senão naquilo em
que ofendemos a Lei, e jamais em decorrência do trabalho de desobsessão, em si
mesmo. Seria profundamente injusta a Lei, se assim não fosse. Então, vamos ser
punidos porque estamos procurando, exatamente, praticar a Lei universal do amor
fraterno e da solidariedade que nos recomenda o Cristo?
Não
aceitaremos a intimidação, mas não a devolveremos com uma palavra ou um gesto
de desafio que de provocação. É necessário não intimidar-se diante da bravata,
mas sem cometer o engano de ridicularizá-la. Há uma diferença considerável em
ser íntimorato e ser temerário. Nossa bagagem de erros ainda a resgatar não nos
permite usar o manto da invulnerabilidade, mas não deve deter os nossos passos
na ajuda ao irmão que sofre. Mesmo que ele nos fira, com a peçonha de seu
rancor inconsciente, quando lhe estendermos a mão, para ajudá-lo a levantar-se,
ele nos será muito grato se o conseguirmos e, no fundo, bem no fundo de si
mesmo, ele, mais do que ninguém, deseja e espera que nós consigamos salvá-lo,
pois que, por si mesmo, com seus próprios recursos, ele não o conseguiu ainda.
E, afinal de contas, se os espinhos nos ferirem, aqui e ali, também estaremos
nos libertando das nossas próprias culpas.
A regra,
portanto, é esta: não ridicularizar a bravata, nem desafiar a ameaça; não
responder à ironia com a mofa; não se intimidar, mas não ser imprudente.
Regra
semelhante poderia ser sugerida para responder à proposta, e esta precisa,
igualmente, de algumas considerações à parte.
Um grupo
bem orientado e bem guardado pelos amigos espirituais invisíveis começará,
pouco a pouco, a obter resultados que surpreenderão não apenas aos próprios
componentes encarnados, como também aos desequilibrados Espíritos
manifestantes. Estes não compreendem como pode um pequeno grupo, aparentemente
tão frágil, tão reduzido, resistir à investida de tremendas e poderosas
organizações espirituais, votadas, há um tempo enorme, à prática do mal.
Inúmeros outros seres e grupos que tentaram, no passado, impedir seus passos,
deram-se mal, e foram afastados sumariamente. De modo que, passado o rompante
das primeiras agressões, os companheiros desvairados proporão barganhas e tréguas,
ou pequenas concessões. A imaginação é fértil e a experiência deles é longa,
no trato de situações como essa, a da resistência inesperada. A proposta pode
ser um simples negócio. Estão acostumados a tais ajustes e transações. Acham
que tudo tem seu preço e dispõem-se sempre a pagar o preço combinado por aquilo
que lhes interessa. Se podem comprar nossa desistência, por exemplo, não
hesitarão em propor uma barganha:
— Está bem. O que você deseja para parar com
isso?
“Parar
com isso” é deixá-los fazer o que entendem, encerrar as atividades do grupo ou
dedicar-se a outros afazeres mais inócuos e menos prejudiciais aos seus
interesses. Concordarão, por exemplo, em deixar de atormentar alguém, a que
particularmente estejamos dedicados, ou em liberar outros, que mantêm prisioneiros
no mundo espiritual. Ou então nos oferecem coisas mais terra-a-terra, como
dinheiro, posição, prazeres.
De outras
vezes a proposição é mais sutil. Começam com elogios, exaltando nossas
fabulosas “virtudes”:
— Você
não sabe a força que tem! Poderia arrastar multidões, dominar mentes...
A um
desses respondi que não sabia, ainda, como dominar a minha... E ele,
imperturbável:
— Sabe,
sim. Você sabe... Por que não fazemos um acordo?
Outro
convidou-me para “pregar”, na sua instituição. Já referi aqui, também, àquele
que me propunha desfazer um “trabalho”, feito contra mim, ao que tudo indicava,
por ele mesmo... Há os que propõem desembaraçar-nos de pessoas que supostamente
nos estariam atrapalhando, bem como, aqueles que nos acenam com “belíssimas” posições,
nas suas organizações.
Como
dizia há pouco, a imaginação deles é fértil e a habilidade ilimitada, e muitos
são os que se deixam fascinar por esse cântico funesto. Um deles me disse,
certa vez, que eu ficaria estarrecido, se soubesse daqueles que haviam
concordado com arranjos semelhantes. De um Espírito encarnado, que nosso grupo
estava particularmente interessado em socorrer, nos foi dito que desistíssemos,
porque ele não voltaria: já havia “cruzado a ponte”, para o lado de lá... Tinha
tudo quanto queria, estava muito feliz, O negócio, evidentemente, fora bom para
ambos os lados, o que, na prática comercial, indica uma boa transação concluída
de maneira auspiciosa.
Duas
observações básicas é preciso ainda fazer, sobre tais propostas e acomodações:
a primeira, é mais do que óbvia, ou seja, as concessões que nos oferecem têm
elevado preço, por mais inocentes que se apresentem, à primeira vista. Além do
mais, nada impede que desfaçam o trato, a qualquer tempo, quando não mais
interessar-lhes o nosso concurso ou caducar a razão pela qual se valeram da
nossa ingenuidade infantil. A cobrança virá, então, sobre aquele que concordou
com o trato e que, de suposto aliado, passa a vítima inerme de sua própria
tolice. A segunda observação é a de que, quando os nossos irmãos atormentados
propõem semelhantes transações, com a finalidade de nos levarem a abandonar o
trabalho, deixar de ajudar alguém, ou fazer, enfim, qualquer concessão, é
porque estão começando a sentir-se algo perplexos, ante a resistência inesperada
à sua vontade. Eles não estão habituados a fazer acordos para obter o que podem
conseguir pela imposição e pela intimidação, ou pelo terror. Tenhamos, porém, o
bom senso de não procurar tirar partido da situação, imatura e
precipitadamente. A prudência continua a ser a melhor conselheira. Além disso,
não podemos permitir-nos utilizar, jamais, métodos semelhantes aos seus. Eles
compreenderão nossos escrúpulos e nosso jogo aberto e acabarão respeitando-nos
por isso, estejam ou não convencidos ante a nossa argumentação. Se a uma
proposta, por mais infantil que seja, da parte deles, tentarmos “virar a mesa”,
estaremos sintonizando-nos com o mesmo diapasão ético com que eles nos
experimentam e, com isso, irá por terra a precária ascendência moral que porventura
tenhamos alcançado sobre eles. Não podemos, jamais, esquecer-nos de que são
pobres irmãos desorientados, desesperados, dispostos a tudo, mas que
necessitam de nós. Buscam aflitivamente alguém que não possam corromper com
suas propostas, alguém que prove ser pelo menos um pouco melhor do que a média
humana, com a qual estão acostumados a lidar. Não alimentemos a ilusão de
demonstrar-lhes que, diante de nós, são simples vermes infestados de culpas,
votados à maldade intrínseca, e nós, seres redimidos, que condescendemos em
estender-lhes a mão salvadora que, depois, iremos desinfetar. Absolutamente. É
bem possível que sejam mais atilados psicólogos do que nós, mais experimentados
do que nós, nessas duvidosas transações. Encaram suas tarefas deploráveis como
complexas partidas de xadrez, nas quais têm, às vezes, que sacrificar uma dama,
ou um bispo valioso, para dar o xeque ao rei. São metódicos, dispõem de amplos
e minuciosos planejamentos. Não os subestimemos jamais, que as conseqüências
serão funestas para nós. Escarnecer de suas propostas, porque sentimos que
estão fracos e algo perplexos, pode ser desastroso, e, além do mais, é
desumano. São irmãos doentes, que precisam de ajuda e compreensão, e não de
que os confirmemos nas suas práticas, retrucando aos seus processos ardilosos
com ardis de idêntico teor.
Em
situações como esta, costumo ter uma resposta padronizada. Não recuso a
proposta, e nem a aceito. Confesso-me simplesmente incapaz de decidir, o que é
estritamente verdadeiro. Usualmente, digo qualquer coisa assim:
— Não
tenho autoridade para tratar com você. Procure um dos nossos companheiros
espirituais, aí no mundo de vocês. O que ele resolver, está bem para mim.
Às vezes
eles insistem, pois sabem muito bem o que significa a minha resposta. O tom
pode ser este, como tenho observado:
— Está
bem, mas você pode resolver a parte que lhe toca. Eles não poderão fazer nada,
se não tiverem o grupo, e se você acabar com o grupo, estará tudo resolvido e
não mais o incomodaremos. Caso contrário... você sabe...
A posição
do doutrinador tem que continuar firme, paciente, tranqüila, e até mesmo
respeitosa, pois a dor alheia jamais poderá constituir espetáculo de diversão,
a não ser para aqueles que também estejam em desequilíbrio. É preciso
respeitá-la. A criatura que está diante de nós, incorporada ao médium,
encontra-se desatinada, necessitada de compreensão e de amparo. Merece nosso
respeito. Seria profundamente desumano negacear com ela, tentando ludibriá-la
com os mesmos recursos com que, no seu desespero, tentou enganar-nos. Que ela
tente, isso é compreensível; mas que nós, também, experimentemos a mesma arma,
é inadmissível. Se não podemos provar-lhes que somos melhores do que eles — e
não podemos mesmo, pela simples razão de que não o somos, pelo menos na
extensão que a nossa vaidade poderia sugerir — que, pelo menos, evidenciemos
que nossos métodos são melhores.
Um pobre
irmão desses, extremamente desarvorado, atormentou-nos, por algum tempo, com
ameaças terríveis; assediou-nos, semana após semana; deu murros na mesa,
gritou e fez tudo quanto lhe foi possível para destroçar-nos ou quebrar o nosso
moral. Acreditava na legitimidade incontestável da sua causa. Era profundamente
honesto consigo mesmo e, portanto, todos aqueles que se lhe opunham tinham que
ser removidos de qualquer maneira: pela intimidação ou pela lisonja, pela dor
ou pela sedução; não importam os métodos, desde que os fins sejam alcançados.
Tinha, porém, um grande e generoso coração, totalmente dedicado à sua ingrata
causa. Não lutava especificamente contra nós, mas pelas suas idéias, e achava,
como tantos outros, que combatia o bom combate de que nos falava Paulo. Um
dia, convenceu-se de seu engano, com a graça de Deus. Desceu do seu pedestal de
poder e arrogância — fora também um grande e, sem dúvida, um pobre transviado,
no passado —, viu-se em toda a extensão de seus enganos. Nesse ínterim, um de
nossos médiuns teve com ele um encontro, no mundo espiritual, em desdobramento. Estava
recolhido a uma instituição socorrista, e arrasado de remorso, pelas atitudes
agressivas e despropositadas ante o seu doutrinador e o próprio grupo, que
tanto se esforçava por salvá-lo. Voltou, depois, para dizer-nos desses nobres
sentimentos, redespertados em seu coração. Essa história tem ainda um post
scriptum. Ele visitou-nos novamente, tempos depois, para despedir-se, muito
contrito e infinitamente grato aos pequenos trabalhadores que o ajudaram:
preparava-se para reencarnar, e vinha pedir nossas preces, pois estava mais
certo do que nunca do nosso amor fraternal.
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