Dialogo com as Sombras 3ª PARTE - (24) O PROBLEMA
TERCEIRA PARTE
O CAMPO DE TRABALHO
24 - O PROBLEMA
O ser humano, encarnado ou desencarnado, vive no
clima da emoção, pressionado ou sustentado por ela, levado por ela às furnas
mais profundas da dor e da revolta, ou alçado aos píncaros da felicidade e da
paz. Ela nos afeta, mesmo quando, ocasionalmente, parece não existir em nós. É
oportuno lembrar que emoção, etimologicamente, quer dizer ato de deslocar, ou
seja, mover. Arrastado pela emoção, o Espírito se desloca, num sentido ou
noutro, caminhando para as trevas de sofrimentos inenarráveis ou subindo para
os planos superiores da realização pessoal, segundo ele se deixe dominar pelo
ódio ou se entregue ao amor. Esse deslocamento o conduz a extremos de paixão,
que o esmaga, ou a culminâncias de devotamento, que o santifica, e, muitas
vezes, em estágios ainda inferiores da evolução, confunde-se em nós a realidade
ódio/amor, e nos confundimos nela e com ela, porque é comum tocarem-se os
extremos.
O
trabalho de desobsessão não deve ignorar essa realidade. Freqüentemente, o
processo da desobsessão se desencadeia, de maneira paradoxal, por amor, e é
lembrando esse aspecto que conseguimos, às vezes, ajudar os Irmãos, que se
atormentam mutuamente, a colocarem um ponto final nas suas angústias. O que
acontece éque temos em nós todos o instinto egoísta — e quase todos os
instintos são egoístas — de conservar a posse total do objeto de nossa
preferência ou afeição: a esposa, o esposo, o filho, o dinheiro, a posição social,
o poder. Suponhamos que a esposa nos traia, que o filho nos rejeite, que o
dinheiro ou o poder nos sejam arrebatados.
Passamos
imediatamente a odiar os que nos privaram da posse daquilo que amamos ou
valorizamos. Com isto, percebemos que amor e ódio são duas faces de uma só
realidade, luz e sombra, que em determinado ponto absorveram-se uma na outra,
criando uma opressiva atmosfera de penumbra, na qual perdemos a visão dos
caminhos e o senso da direção. Para desfazer esse clima de crepúsculo, que
agonia e desorienta o Espírito, é preciso ajudá-lo a identificar bem seus
sentimentos, a fim de separá-los. Estejamos certos, para isso, de uma realidade
indisputável, ainda que pouco percebida: o amor, como dizia Paulo aos
Coríntios, não acaba nunca. Mesmo envolvido, soterrado no rancor e na vingança,
ele subsiste, sobrevive, renasce, está ali. O ódio não o exclui; ao contrário,
fixa-o ainda mais, porque em termos de relacionamento homem/mulher, o ódio é,
muitas vezes, o amor frustrado. Odiamos aquela criatura exatamente porque
parece que ela não quer o nosso amor, porque nos recusa, nos traiu, nos
desprezou, porque a amamos...
No
momento em que conseguimos convencer o companheiro desencarnado, em crise, que
ele odeia porque ainda ama, ele começa a recuperar-se, compreendendo que essa
é uma verdade com a qual ele ainda não havia atinado. Por mais estranho que
pareça, o rancor contra a amada, ou o amado, que traiu ou abandonou, é que
mantém acesa a chamazinha da esperança. Aquele que deixou de amar é porque não amou
bastante e, com menor dificuldade, desliga-se do objeto de sua dor. Cedo
compreende que não vale a pena perder seu tempo, e angustiar-se no doloroso processo
de vingar-se, dado que — e isto também pode parecer contraditório — não
podemos ignorar o fato de que a vingança impõe, também ao vingador, penosas
vibrações de sofrimento.
Vários
casos assim temos encontrado na experiência de nossos grupos.
Um desses
foi comovente. O Espírito manifestante era de uma mulher. Seu antigo
companheiro, ora encarnado, fazia parte de nosso grupo e ela ainda trazia em
seu coração um rancor que 130 anos não conseguiram extinguir. Fora muito bela,
inteligente, de elevada posição social, e rompera com todas as convenções da
época para segui-lo. E por mais de um século, recolhida ao mundo espiritual,
achara que não valera a pena o seu sacrifício e que ele não dera valor às suas
renúncias e nem as merecera.
Foi muito
difícil o diálogo com ela. Tudo foi tentado pelos nossos queridos amigos
espirituais. Levaram-na a um encontro com ele desdobrado pelo sono — a um
local, na Europa, onde viveram momentos de intensa felicidade e enlevo.
Ajudavam, como podiam, o doutrinador, nos seus esforços. Ela era muito
brilhante e estava muito magoada: tinha respostas oportunas, encontrava em si
mesma todas as justificativas para continuar agindo daquela maneira. Afinal de
contas, não pensara noutra coisa, por mais de um século! Promoveram, os
benfeitores espirituais, encontros com um filho que o casal tivera naquela
ocasião e que se encontrava também no mundo espiritual, bastante pacificado e
dedicado ao trabalho construtivo. Reencontrou-se ela, também, com outra filha —
esta reencarnada — à qual se dirigia com carinho e afeição, através do médium.
Nada. Certa vez, em lugar de ligá-la ao seu médium habitual, ligaram-na com o
próprio companheiro, objeto de seus rancores, pois ele também dispunha de
excelentes faculdades mediúnicas. Quando ela percebeu que falava por seu
intermédio, retirou-se prontamente, muito chocada. De outras vezes, ele tentou
dialogar com ela, mas a experiência foi negativa, pois a sua palavra parecia
exacerbar o rancor que a infelicitava.
Esse
drama durou meses, semana após semana. E ela, irredutível. Certa vez, sentindo
que começava a ceder aos argumentos ou aos sentimentos de afeição que colhia no
grupo, ela desligou-se subitamente do médium. Nossos benfeitores, por doce
constrangimento, trouxeram-na de volta, já em pranto. Ela veio
indignada, revoltada, falando entre lágrimas:
— Quando
vai terminar esta farsa?
Pacientemente,
o doutrinador lhe devolveu a pergunta com outra:
— Você
acha, minha querida, que suas lágrimas também são uma farsa?
Estava
chegando ao fim de sua longa e penosa agonia Íntima. Começou a ceder, à medida
em que o amor reacendia a sua chama, a princípio timidamente, e depois, com
todo o vigor antigo, mas agora purificado, expurgado da paixão que fora a sua
perda. Acabou por reconciliar-se com o seu antigo amado.
Esta
história, tão verídica e dramática quanto a própria vida, teve um final
emocionante e, graças a esse episódio, vivi uma das mais belas e comovedoras
emoções da minha experiência no trato com os Espíritos.
Certa
noite, ela veio apenas para despedir-se. O drama e a dor estavam encerrados.
Agora, era a retomada da trilha evolutiva, a perspectiva de novas experiências
redentoras: a querida irmãzinha preparava-se para reencarnar-se, perfeitamente
reconciliada com a vida e com o amor. Foi-nos permitido identificá-la na nova
encarnação que se iniciava sob tão belos auspícios e tão gratas alegrias para
todos aqueles que a amavam.
Renasceu.
Uma bela criança, em lar feliz e equilibrado. Logo aos primeiros meses de sua
nova existência, tive oportunidade de vê-la. Visitava eu a família, e a jovem
mãe me chamou para ver a criança. Entramos no quarto em que ela dormia
profundamente. A mãe acendeu a luz, sob meus protestos, pois temia que ela acordasse,
mas ela continuou dormindo. Era linda, e dormiu ainda alguns segundos. Depois,
abriu os olhinhos, contemplou-me — seu antigo doutrinador, com quem sustentou
batalhas impetuosas — e me deu o prêmio inesperado de um belissimo sorriso...
Em seguida, adormeceu novamente, como um anjo que era. Senti naquele sorriso a
mensagem da paz e da gratidão. Seus olhinhos exprimiam felicidade e amor. Sua
expressão me dizia, na linguagem inarticulada da emoção:
— Ah! É você? Eu já
estou aqui, amigo...
Sem
dúvida alguma, o amor também renascera com ela. Seu antigo companheiro recebe
dela, hoje, o amor transcendental da neta muito querida pelo avô, que mereceu
também a bênção do reencontro e da reconciliação.
*
A coisa não
é tão fácil quando o Espírito desajustado persegue aquele que o fez perder a
posição, o poder, o dinheiro ou o amor. Quase sempre se esquece o vingador de
que ele próprio desencadeou o mecanismo do resgate quando, em passado
esquecido, mas indelével, cometeu faltas idênticas contra o próximo. Na
confusão em que se envolve, o culpado de sua queda, de suas frustrações, não
são os seus próprios enganos, é aquele que ali está, encarnado ou desencarnado.
Sua revolta e sua angústia como que se personalizam, objetivam-se, e é mais
fácil lutarmos e tentarmos destruir uma pessoa, que identificamos como
causadora de nossa derrota, do que enfrentarmos a dura realidade de que a causa
está em nós mesmos e que o ser a quem perseguimos foi apenas o infeliz
instrumento da lei. Nossos erros são cometidos contra a lei divina; é preciso
deixar a ela o trabalho de reajuste. Aquele que assume a posição de tomar a
justiça divina em suas mãos, está reabrindo o ciclo da dor, em vez de fechá-lo
com o perdão. Mais uma vez é preciso lembrar aqui a técnica desobsessiva que o
Cristo nos ensinou:
“Ouvistes dizer: Amai vosso próximo e odiai vosso
inimigo. Pois vos digo: Amai os vossos inimigos e rogai pelos que vos perseguem,
para que sejais filhos de vosso Pai celestial, que faz brilhar o seu sol sobre
os maus e sobre os bons e chover sobre os justos e os injustos. (1)
Orar por
aqueles que nos perseguem não é apenas um preceito evangélico teórico — e já
seria muito, por certo — é um ensinamento do mais elevado valor prático, ante
os companheiros com os quais nos desentendemos no passado. O rancor que sentem
por nós sobrexiste, ou se dilui, segundo nossas próprias reações, sempre
observadas atentamente pelos nossos cobradores. Se os odiamos também, o ódio
que nos votam sustenta-se, fica estimulado, persiste, atravessa os séculos e
os milênios. Isto é uma realidade terrível, que multidões de sofredores
ignoram, lamentavelmente. Se deixamos de odiar e passamos a orar por aquele que
nos atormenta, libertamos pelo menos dois seres: a nós e a ele, além de outros
que possam estar comprometidos no processo.
Nunca
será suficientemente enfatizada a importância deste conceito, em trabalhos de
desobsessão. Isto é válido também — e como! — para a maneira pela qual
recebemos nossos irmãos em desajuste e com eles dialogamos. Deixaremos para
debater esse aspecto mais adiante, quando cuidarmos das técnicas e recursos
sugeridos para o trabalho. Convém, no entanto, insistir e repetir: os Espíritos
em
(1) Mateus, 5:43-45. A Bíblia de Jerusalém
esclarece, em nota de rodapé, que a expressão odiai vosso inimigo não se
encontra no texto da lei, o que é verdadeiro, pois não consta de Levíticos,
19:18, de onde foi extraída a citação. Esclarece, porém, que a expressão era
forçada, por causa da pobreza da língua, O vocabulário da época, ao que se
depreende, não tinha uma expressão correta para descrever o sentimento que não
seria nem amor, nem ódio, nem indiferença e, por isso, todo aquele que não fosse
amigo, seria inimigo; tudo o que não pudesse ser considerado amor, era ódio. De
certa forma, essa pobreza semántica perdura.
estado de
perturbação avaliam as nossas emoções e não as nossas palavras. Estão, no
fundo, ansiosos de que os convençamos de seu erro, porém jamais reconheceriam
isso. Se no debate opusermos nossa irritação à deles, nada conseguiremos senão
confirmá-los nos erros em que se enquistaram através do tempo, repetindo
enganos e desenganos.
Lembro-me
de um exemplo, entre muitos, dessa curiosa posição espiritual, O companheiro
manifestou-se impetuoso e logo revelou-se indignado porque não conseguiu
despertar em mim uma reação idêntica à sua, ou seja, também de irritação, para
que se criasse o clima da desavença que pensam convir-lhes. Como me mantinha
sereno e imperturbável, ele se esvaziou pouco a pouco do seu ímpeto e partiu,
algo desapontado, mas ainda não convencido, talvez pensando em descobrir um
método qualquer de me irritar, a fim de arrastar-me para a sua faixa
vibratória, onde melhor poderia alcançar seus propósitos. Na semana seguinte
deu-se a coisa mais linda. Incorporou-se ao seu médium, ao meu lado, olhou-me e
disse, com voz emocionada, em tom e em palavras que nunca mais me esquecerei:
— Não precisa armar-se. Você já me ganhou...
Uma
simples frase dessas descreve um mundo de emoções e de decisões que um livro
não poderia conter. Que me restava dizer a ele, senão da profunda emoção e
gratidão pela sua resposta ao sentimento da fraternidade?
O doutrinador tem que estar, pois, muito atento,
para não deixar envolver-se pelo rancor que o Espírito traz em si. Um confrade,
experimentado nas lides espíritas, e que acumulou, ao longo dos anos, extenso
rol de casos curiosos, contou-me que um doutrinador desavisado, profundamente
irritado com o desajustado Espírito manifestante, berrou-lhe, no auge da
desarmonização:
— Materializa-te, que quero te dar uma bofetada!
*
A situação é consideravelmente mais
difícil quando o doutrinador defronta-se com seu próprio obsessor. Neste caso,
a tarefa assume implicações de natureza muito pessoal, para as quais o
doutrinador tem que estar preparado. Mais adiante, estudaremos um caso destes.
Neste ponto, basta extrair da situação um ensinamento
extremamente
precioso e que nunca deve ser esquecido: o de que o arrependimento e o remorso
também devem ser construtivos. Isto vale, tanto para o que persegue, quanto
para o perseguido.
Tentemos
explicar este delicadíssimo mecanismo.
Imaginemos
um Espírito desencarnado, envolvido num tenebroso processo de obsessão. Ele
persegue e vinga-se de alguém implacavelmente, século após século, num ódio
que parece não ter fim e que nunca chega à saciedade, pois é da natureza do
ódio jamais satisfazer-se em si mesmo. É certo que ele ignora, consciente ou
não, a causa anterior que determinou o efeito da sua dor. Digamos que ele tenha
sido assassinado, por alguém, enquanto exercia elevada posição de mando, como
um rei, por exemplo, ou déspota medieval. Toda a sua cólera, no mundo das
trevas, se concentra naquele que provocou a sua desencarnação. Ele não quer
saber que anteriormente, naquela vida ou em outra, remota ou não, ele mesmo
praticou falta semelhante e agora recebe a visita inevitável da lei. Ele só
sabe que aquele miserável o matou e, portanto, merece todos os castigos e
punições. Além do mais, ele sabe também que, ao errarmos, expomo-nos, a nosso
turno, à cobrança, o que, na sua maneira de pensar, dá-lhe o “direito” de
punir e de vingar-se.
Suponhamos,
ainda, que ao cabo de uma feliz doutrinação, aquele severo perseguidor resolva,
afinal, encerrar o processo da vingança. Está cansado, chegou à conclusão de
que não vale a pena continuar, porque um dos grandes infelizes é ele próprio;
ou, mais grave ainda, descobriu que, no passado, ele próprio cometeu faltas
muito mais terríveis do que aquela que pretendeu cobrar, em nome de um Deus em
que ele mesmo não acreditava. Pode ele, em tais circunstâncias, descer a
abismos de autocomiseração e dor. Temos tido oportunidade de presenciar
arrependimentos dramáticos, desesperados.
É o
momento de ajudá-lo a construir algo com os salvados de sua tragédia,
mostrando-lhe que o remorso deve ser construtivo, senão ele, que estava parado
na estrada da evolução, vai continuar paralisado pelo remorso.
De outro
lado, vejamos o perseguido, ou obsidiado. Nem sempre ele sabe por que sofre os
rigores da vingança. O erro vem de muito longe, e deve ser muito grave, para
que ele sofra daquela maneira, mas ele desconhece as causas da sua dor e nem
sequer tem oportunidade de enfrentar, num diálogo, o seu obsessor. Como
Espírito, ele não o ignora; apenas o véu do esquecimento o protege, como a
todos nós, de lembranças extremamente dolorosas, que não temos condição de
suportar com a nossa consciência de vigília. Se ele tem oportunidade, porém, de
conhecer a razão de sua obsessão, e entrega-se ao remorso desenfreado,
dificulta a libertação de seu próprio Espírito e do de seu verdugo. Por outro
lado, ele não pode ignorar o arrependimento, pois é exatamente este sentimento
que lhe dá os primeiros recursos para livrar-se da dor. Sem arrependimento,
colocamo-nos em posições nas quais não podemos sequer ser ajudados. A situação
é, pois, muito complexa e delicada, porque o mesmo sentimento de remorso que o
levou a merecer ajuda, pode retê-lo à mercê do seu perseguidor, se não for
canalizado para fins construtivos, O remorso é, pois, uma flor belíssima, de
muitos e pontiagudos espinhos. É preciso estudá-lo, tratá-lo com serenidade,
equilíbrio e humildade. Sim, estamos arrependidos do erro cometido contra o
irmão; mas não podemos permitir que o nosso arrependimento alimente
indefinidamente o seu rancor. É nisso, aliás, que ele se esforça: manter a sua
vítima sempre lembrada do erro, porque o arrependimento serve dupla-mente,
tanto para fazê-la sofrer, como para estimular a cobrança, que se eterniza.
— Paga a tua dívida! — gritou certo companheiro
desarvorado.
Mas,
pagar como? Que entenderia ele por pagar a dívida? Certamente que com a dor que
resgata e com o arrependimento que nos retém preso a ela. É uma situação
extremamente critica e delicada.
Ainda
voltaremos a este tema, que contém outras implicações e conotações de grande
interesse para o trabalho de doutrinação.
0 comentários:
Postar um comentário