30 - O DESENVOLVIMENTO DO DIÁLOGO. FIXAÇÕES. CACOETES. DORES “FÍSICAS”. DEFORMAÇÕES. MUTILAÇÕES.
Pouco a pouco, o diálogo vai se
desenvolvendo, a partir de uma espécie de monólogo, pois, no princípio, como
vimos, é necessário deixar o Espírito falar, para que informe sobre si mesmo, o
que acaba acontecendo. Muitos o fazem logo de início, dizendo prontamente a
que vieram e o que pretendem. Mesmo a estes, porém, é preciso deixar falar, a
fim de nos aproximarmos do âmago de seus problemas. Outros são bem mais
artificiosos. Usam da ironia, fogem às perguntas, respondendo-nos com outras
perguntas ou com sutis evasivas, que nada dizem. É comum tentarem envolver o
grupo todo na conversa. Várias artimanhas são empregadas para esse fim. Dirigem
perguntas aos demais circunstantes; dizem gracejos, para provocar o riso;
tentam captar a atenção por meio de gestos e toques, nos braços ou nas mãos dos
que lhes ficam mais próximos; ensaiam a indução hipnótica ou o passe magnético.
Muita atenção com estes artifícios. Eles trazem em si uma sutileza perigosa e
envolvente, pois constituem uma técnica de penetrar o psiquismo alheio.
Um companheiro esclarecido e experimentado que, do mundo invisível, nos
orientava, costumava sempre dar uma palavra inicial, de estímulo e
encorajamento, para as árduas tarefas que nos esperavam cada noite, todas as
semanas. Ele tinha o hábito de fazer uma saudação geral, e depois dirigir-se a
cada um de nós em particular, com uma palavra mais pessoal, afetuosa e
cordial. Seu objetivo não era o de distinguir este ou aquele, e nem mesmo de
dar conselhos individuais sobre nossos problemas humanos; era apenas o de
estabelecer, entre nós todos e ele, um vínculo positivo, que nos predispunha ao
trabalho em equipe e certamente contribuía para que nos mantivéssemos, todos,
em boa faixa de equilíbrio e concentração. Suas palavras singelas, a cada um de
nós, criavam, pois, este elo, necessário ao trabalho. Neste caso, a técnica era
obviamente utilizada para o bem, mas, sem dúvida alguma, os Espíritos
desarmonizados também a conhecem e procuram empregá-la, com finalidades muito
diversas. Se um companheiro desavisado responde, mesmo com um simples sorriso,
os resultados podem se tornar desastrosos. Tivemos disso um exemplo, certa vez,
quando alguém, em nosso grupo, achou graça num comentário do manifestante. O
Espírito começou a dirigir-se a ele, esquecendo aparentemente a presença do
doutrinador e suas palavras, pois isto faz parte da técnica. Como o companheiro
correspondeu à sua abordagem, o Espírito sentiu-se à vontade para prosseguir e
foi muito franco e espontâneo ao manifestar sua satisfação, por ver que encontrava
apoio num dos componentes do grupo, muito embora soubéssemos perfeitamente que
este não o estava apoiando, mas certamente o estava favorecendo
involuntariamente. Sentiu-se fortalecido e disse, mesmo, após longo tempo de
conversa, que não
se retirava — esta é outra técnica intimidadora,
que ainda estudaremos — com a clara intenção de desmoralizar o doutrinador,
que ficaria falando sozinho.
Há, pois,
excelentes razões para manter como regra, de raríssimas exceções, o princípio
de deixar que apenas o doutrinador fale com o manifestante. Ë através daquele
que atuam os Espíritos orientadores, que ficariam com seu esforço dispersado se
tivessem que dar atenção e atuar, via intuição, sobre todos os componentes do
grupo incumbidos ou autorizados a falar com o Espírito.
O
doutrinador tem que estar, assim, bem atento aos seus companheiros encarnados,
em torno da mesa, médiuns ou não, para que se mantenham firmes nas suas
posições, o que é importante para o desenvolvimento das tarefas. Estes
companheiros não devem fechar-se na indiferença, quanto ao que se passa, pois
emprestam seu apoio vibratório silencioso ao doutrinador; mas não devem cometer
o engano de se envolver na conversa, a ponto de, mesmo mentalmente, interferir
no difícil diálogo que o doutrinador está tentando estabelecer, para perscrutar
o arcabouço psicológico e moral do seu interlocutor invisível.
Às vezes, os
circunstantes encarnados, não bem afinados afetivamente com o doutrinador,
podem introduzir perigosos fatores de desagregação no grupo, se persistirem em
acompanhar mentalmente a doutrinação, com um senso crítico imprudente,
imaginando o que diriam em tais circunstâncias. Os Espíritos manifestantes têm,
freqüentemente, condições de captar-lhes o pensamento e, se o fizerem,
certamente tirarão partido da discrepância, mesmo que ela fique imanifesta. Por
isso, tanto se insiste na importância da fraternidade, entendimento e
compreensão entre todos os componentes do grupo encarnado. Não que o
doutrinador seja infalível, perfeito, nem que esteja sempre certo e com a
razão; mas ele precisará do apoio e da compreensão de seus companheiros, ainda
que tenha falhado; e, com freqüência, ele falha mesmo, porque o terreno em que
pisamos, no trato com esses irmãos desarvorados. é difícil. imprevisível e
traiçoeiro.
Dessa forma,
alguém que não possa concordar com os métodos empregados pelo doutrinador, a
ponto de tornar-se criticamente negativo, deve afastar-se do grupo. Ê possível,
claro, que ele esteja certo, e o doutrinador errado; mas é melhor excluir-se,
do que permanecer no grupo como um ponto de atrito oculto, que mina o trabalho.
Se não pode ajudar, que, pelo menos, não acarrete maiores dificuldades. Se ele
estiver certo, na maneira de apreciar o trabalho do doutrinador, e este não
possuir, mesmo, condições para a sua tarefa, as coisas encaminhar-se-ão para um
desfecho natural; se apenas critica e discorda em razão de distorções de sua
própria psicologia, então nada tem a contribuir de bom para o grupo e poderá
acarretar-lhe considerável dano.
Lembremos,
pois, a validade da regra que recomenda que apenas o doutrinador fale com o
Espírito manifestante. É comum que este procure burlar a norma, tentando
arrastar outros membros do grupo ao debate. Convém a eles a generalização da
conversa, que afasta o doutrinador e o coloca mais ou menos à margem, numa
técnica muito sutil de desmoralização.
Sob
condições especiais, no entanto, é possível que ocorra a necessidade, ou a
conveniência de alguém mais falar. Pode ser, por exemplo, que alguém, no grupo,
tenha qualquer problema pessoal com o Espírito manifestante, e se sinta
fortemente impelido a dizer-lhe uma palavra de conciliação, fazer-lhe um pedido
de perdão, um gesto de fraternidade mais objetivo, além do pensamento. Também
pode acontecer que o Espírito manifestante sinta real necessidade de uma
palavra direta, com alguém presente que, por amá-lo particularmente, pode
ajudar a despertá-lo, com a emoção de uma voz que há muito não ouve, ou com um
gesto de que se lembre com saudade.
Em casos
assim, o doutrinador julgará, segundo sua intuição ou a instrução dos mentores,
permitindo que outra pessoa fale ao Espírito. Claro que, mesmo assim, deve
continuar atento, seguindo com extremo cuidado o diálogo, para retomá-lo quando
julgar necessário, porque cabe a ele a responsabilidade por esse aspecto da
tarefa; é ele quem está preparado para ela, em vista de suas ligações com os
companheiros espirituais, através dos dispositivos especiais a que nos
referimos alhures, neste livro.
Fora desses
casos, que insistimos em qualificar de excepcionais, deve prevalecer a regra
geral do silêncio e da sustentação psicológica aos médiuns e ao doutrinador.
Outra norma
subsidiária: os circunstantes, como componentes encarnados do grupo, vigiem bem
seus pensamentos. Mantenham-se atentos ao diálogo, mas não se envolvam nele,
nem mesmo por palavras inarticuladas, ou seja, apenas pensadas.
Enquanto
isso se passa, a conversa prossegue. Ainda não dispõe, o doutrinador, de
elementos suficientes para formular um juízo acerca do caso que tem diante de
si. Talvez já saiba, por exemplo, a que veio o Espírito, ou seja, descobriu a
razão pela qual foi atraido ao grupo. Estamos tentando, digamos, subtrair, de
sua influência obsessiva, alguém que nos pediu ajuda. Mas é preciso saber por
que ele (ou ela) persegue o companheiro encarnado. Qual a sua ligação com o
obsidiado? De onde vem, no tempo e no espaço, o choque que se criou entre eles?
Em suma: quais são as fixações do Espírito? Todo processo obsessivo tem o seu
núcleo: traição, vingança, espoliação, desamor. É, quase sempre, um caso
pessoal, de conotações essencialmente humanas, com problemas suscitados no
relacionamento. Dificilmente um Espírito obsidia outro apenas porque discorda
dele em questões filosóficas ou religiosas, embora isto também seja possível,
em casos extremos de fanatismo apaixonado.
Deixemo-lo
falar, mas não tudo quanto queira, senão ficará andando em círculo, à volta de
sua idéia central. Neste caso, continuará a repetir incessantemente a mesma
cantilena trágica: a vingança, o ódio, a impossibilidade do perdão, o desejo de
fazer a vítima arrastar-se no chão, como um louco varrido, e coisas semelhantes.
O doutrinador precisa ter bastante habilidade para mudar o rumo de seu
pensamento. Terá que fazê-lo, não obstante, com muita sutileza, arriscando,
aqui e ali, uma pergunta mais pessoal, falando-lhe de uma passagem evangélica,
que se aplique particularmente ao seu caso e sempre haverá uma ou mais, que se
adaptam perfeitamente às circunstâncias. Deixe-o falar, porém. Se grita e
esbraveja, procure apaziguá-lo. Não se esquecer de que, por mais errado que
esteja, no seu ódio irracional, ele está convencido dos seus direitos e, até
mesmo, da cobertura divina. Muitos são os que invocam os dispositivos da Lei
Maior, para exercerem suas vinganças e perseguições. Além do mais — dizem —, se
podem fazer aquilo, é que Deus o permite. Ele não tem poderes para fazê-lo
cessar tudo? Por que não exerce tais poderes?
Atenção,
pois, para essas idéias fixas. Por mais voltas que dê o Espírito, mesmo com a
intenção consciente de ocultar sua motivação, ele não conseguirá isso por
muito tempo.
No entanto,
é preciso ajudá-lo a quebrar o terrível círculo vicioso em que se debate. Veja
bem: ajudá-lo a quebrar, não quebrar, arrancá-lo à força. Ele tem que sair com
seu próprio esforço. Ajudar a fazer não é o mesmo que fazer, pelos outros,
aquilo que lhes compete realizar.
Por outro
lado, a fixação é, às vezes, tão pronunciada e tão absorvente, que o Espírito
não tem condições, sequer, de ouvir o doutrinador, ou, pelo menos, não reage de
maneira inteligível ao que este lhe diz. Isto não significa que o doutrinador
deve calar-se; continue a falar-lhe, que as palavras irão insensivelmente se
depositando nele, e mesmo que ele pareça não ouvir — e isso ocorre, mesmo, em
certos casos — seu próprio espírito sente as vibrações fraternas que sustentam
as palavras. Se é que o doutrinador realmente sente o que fala ou, melhor
ainda, fala o que de fato sente.
Aguarde-se,
pois, o momento de ajudá-lo a sair um pouco de si mesmo. Tem que haver, na sua
memória, outras lembranças, outros sentimentos e até mesmo outras angústias,
além daquela que constitui o núcleo da sua problemática. Coloque, de vez em
quando, uma pergunta diferente, procurando atraí-lo para outras áreas da sua
memória. Como, por exemplo: teve filhos? Que fazia para viver? Crê em Deus?
Onde viveu? Quando aconteceu o drama? Tem noticias de amigos e parentes daquela
época?
É claro, porém, que essas perguntas não devem ser
desfechadas numa espécie de bombardeio ou de interrogatório. Ninguém gosta de
submeter-se a devassas íntimas. Com freqüência, os manifestantes reagem,
perguntando se estão sendo forçados a processos inquisitoriais. Ou,
simplesmente, se recusam a responder. Ou dão respostas evasivas. .....
respondem.
Nem sempre
estarão prontos para nos ajudarem a ajudá-los, logo nos primeiros contactos. O
processo pode alongar-se por muito tempo, até que adquiram confiança em nós e
nas nossas intenções.
O objetivo
das perguntas não é, obviamente, o de satisfazer a uma curiosidade malsã e, por
isso, devem limitar-se a conduzir a conversação, fornecendo-lhe pontos de
apoio, sobre os quais ela possa expandir-se, a fim de afastar o pensamento do
comunicante, ainda que temporariamente, do núcleo central que o bloqueia e o
impede até mesmo de buscar a saida daquele círculo de fogo e lágrimas em que se
encerrou inadvertidamente. Não nos esqueçamos, porém, de que espontaneamente
ele não sairá, não porque não queira, mas porque não sabe. Sua vingança é a
própria razão de ser de sua vida; como vai entregá-la a alguém — a um
desconhecido bisbilhoteiro, como o doutrinador — a troco de uma realidade
penosa, que é aquele momento patético em que ele descobre que a causa da sua
dor está em si mesmo, e não na pessoa que ele persegue e odeia?
Além das
fixações penosas, os Espíritos conturbados costumam apresentar cacoetes, sob a
forma de trejeitos e contrações, ou, ainda, mutilações e deformações
perispirituais. É certo que tudo isso está ligado ao problema interior que os
atormenta.
Já tivemos
oportunidade de observar esses pormenores, aparentemente irrelevantes, de
muitas maneiras e sob variadas condições. Vamos a alguns exemplos: citei
alhures, neste livro, o episódio do pobre irmão que tinha um braço paralisado.
Notei que durante o diálogo ele não movimentava aquele membro. Por que seria?
No momento que me pareceu oportuno, sem precipitação, perguntei-lhe o que havia
com o seu braço. Ele não quis dizer. Ou, provavelmente, nem saberia
conscientemente a razão, porque costuma funcionar, nestes casos, um mecanismo
de defesa, que parece construir uma barricada às nossas costas, para levar-nos
a um conveniente esquecimento do passado. Simplesmente “esquecemos” das causas
que nos levaram àquela situação, para poder fixar-nos no objeto do ódio e da
vingança. Não sei, ao certo, se ele sabia a razão da paralisia de seu braço. Se
sabia, tentava ignorá-la. Quando me propus a curá-lo por meio de passes, ele
recusou — sem muita convicção — dizendo que, se ficasse curado, seria apenas
para ter mais um braço para empunhar o chicote - -. - Mesmo assim, levantei-me,
orei e dei-lhe passes ao longo do braço imobilizado, e vi logo que ele reagia,
sentindo o impacto dos fluídos que o alcançavam. E, realmente, ficou bom, voltando
a movimentar o braço. Só então, ao que parece, foi possível liberar o seu
mecanismo de censura, e ele se lembrou da cena de um passado distante, quando
sacrificou, a punhal, a esposa e os filhos, que ele acreditava não fossem seus,
pois achava que ela o havia traído. Exposto o âmago do problema, seu drama
resolveu-se.
Outro
sentia, ainda, a dor aguda de uma lança que o penetrara há séculos, quando
terminou uma existência de inconcebíveis desatinos. Continuava preso ao local
onde exercera um poder discricionário, a ouvir os comentários de visitantes e
turistas sobre suas próprias atrocidades.
Um terceiro
tinha a voz rouca — seria um antigo câncer? —e quase inaudível. Sua “cura”, por
meio de passes, levou-o a um reexame bem menos apaixonado da figura de seu
doutrinador, que ele chamara até de porco!
Outro
companheiro desorientado conservava feia cicatriz sobre o olho direito, porque
ela lhe dava uma aparência terrível, que atemorizava aqueles a quem ele queria
perseguir e afligir.
Em uma
oportunidade, tivemos também um caso, intensamente dramático, de um pobre
sofredor, guilhotinado na França, durante a Revolução. Desde então — segundo
apuramos em seguida — trazia a cabeça “destacada do corpo”, na mão direita,
segura pelos cabelos. O diálogo inicial foi difícil, pois convicto de que
estava sem cabeça, ele não tinha condições de falar. A custo, porém, o fui
convencendo de que podia falar através do médium. Vivia apavorado ante a idéia
de perder de vista a cabeça e nunca mais recuperá-la. Enquanto a tivesse ali, à
mão, mesmo decepada, alimentava a esperança de “repô-la” no lugar. Isto foi
possível fazer, com a graça de Deus. Oramos e lhe demos passes. Subitamente,
ele sentiu que a cabeça voltara à sua posição correta. Louco de alegria, ele
apalpava-se e só sabia repetir:
— Ela está
aqui! Ela está aqui!...
E conferia,
com a ponta dos dedos, toda a anatomia facial e craniana: os olhos, o nariz, a
boca, as orelhas. Estava tudo lá. E dizia:
— Posso
falar! Estou falando!
Queria saber
quem fizera o “milagre” de “colar” a cabeça novamente no lugar próprio. Quanto
ao que lhe acontecera, não acreditava que Deus o tivesse feito, para
castigá-lo, pois Deus não permitiria que um homem andasse sem cabeça por tanto
tempo. Levo-o cautelosamente para uma introspecção, tentando fazer que ele
encontre em si mesmo a razão do seu espantoso sofrimento. Explico-lhe que
vivemos muitas existências, embora as esqueçamos. Em alguma de suas vidas
anteriores ele encontraria a explicação. “Provavelmente”, digo-lhe, “você andou
também cortando a cabeça de alguém”. É verdade, isso. Ele se lembra, agora, que
eram enfiéis a Jeová e, depois de condenados, ele os executava. Reviu até a
fila de espera...
Casos mais
sérios de deformações espirituais exigem o concurso de médiuns especiais, não
apenas para recebê-los, por incorporação, como, também, para ajudar na
recomposição da forma “física”, para o que é necessário dispor de algum
ectoplasma, além dos passes habituais.
Mesmo para o
companheiro a que há pouco nos referimos, de cabeça decepada, o concurso de um
médium de efeitos físicos foi decisivo. Enquanto lhe dávamos passes, ele
parecia absorver os fluídos avidamente, procurando impregnar-se deles, com
movimentos aflitivos das mãos.
Em outros
casos de deformações perispirituais e zoantropia, o médium expeliu realmente
grande quantidade de ectoplasma pela boca, o que se percebeu, mesmo sem a
vidência, pelos movimentos irreprimíveis que fazia como se estivesse vomitando
em seco.
Ainda
falaremos sobre a ectoplasmia nos grupos mediúnicos, porque ela tem outras
aplicações, além da, que há pouco mencionamos, de ajudar a reconstituir lesões
perispirituais e recompor seres reduzidos a formações animalizadas.
*
Mas o
diálogo prossegue. Suponhamos já ter sido possível identificar o núcleo principal
do problema. Já descobrimos as razões fundamentais do seu drama. Não obstante,
muito falta ainda para dissolver e dispersar aquele núcleo doloroso. Mesmo com
tudo isso presente à sua consciência, ele ainda insiste em racionalizar a seu
jeito, o quadro que se lhe apresenta. Continua a submetê-lo ao seu próprio
juízo e a invocar o seu direito à cobrança.
Já
discutimos alguns aspectos teóricos desta questão. Teoricamente, sim, ele pode
cobrar. Não que tenha um direito assegurado nos códigos divinos, porque a idéia
de direito implicaria, talvez, a da impunidade. Não sei se os juristas que me
lêem concordam com isto, mas parece que não podemos ser punidos por exercer uma
ação que o direito nos assegura. É claro que não falo aqui no direito humano,
imperfeita imitação dos conceitos superiores do Direito Cósmico, do qual
conhecemos as primeiras letras. Creio que, se Deus me assegurasse o direito de
cobrar, impunemente, pela vingança, uma falta cometida contra mim, sua lei não
teria sido muito melhor do que a nossa. Não obstante, tanto numa, como noutra,
existe a idéia básica da reparação. A sociedade humana tenta a reparação pelos
caminhos da punição; a divina, pela regeneração.
O criminoso
terreno deve pagar pelo que fez, independentemente do que acontece com aquele a
quem ele prejudicou. A lei humana não toma conhecimento da sobrevivência do
espírito. A lei divina pede do ser, através de sua própria consciência, que ele
se recomponha perante a sua vítima. Ante a lei humana, a prisão ou a
indenização redimem o criminoso; a lei divina vai adiante e lhe pede a
reconciliação, mesmo que, em face dos códigos terrenos, ele esteja quite. Por
outro lado, a lei humana não leva em conta o fato de que o homem sofre
justamente aquilo que está nos seus compromissos cármicos, respondendo por
desatinos cometidos. E se não colocamos um ponto final nessa espiral de
horrores, ela continuará a abrir-se para baixo e para o futuro, cada vez mais
dolorosa e ampla.
Dessa forma,
não haveria direito líquido e certo de cobrarmos, nós mesmos, as faltas
cometidas contra nós, pois que direito é esse, que reabre o ciclo da culpa e
nos obriga a pagar aquilo que consideramos simples reparação?
Mas, como
explicar tudo isso, de forma convincente, ao Espírito tumultuado pela paixão
da vingança? Como iremos mostrar-lhe a falácia da sua filosofia da reparação?
Em muitos casos, ele já está convencido dessa realidade, ou seja, a de que,
exercendo a vingança por suas próprias mãos, ele se inscreve novamente como
culpado, no tribunal invisível da sua própria consciência. Não importa. Ele
quer cobrar, assim mesmo. Quando chegar a hora da dor, ele arcará com as suas
responsabilidades, e as sofrerá, diz ele, com prazer, porque pelo menos terá
saciado o seu rancor. Não sabe ele, porém, que o rancor não se satisfaz nunca,
muito menos pelos caminhos do sofrimento alheio. Por mais absurda que pareça a
tese ao vingador, o seu ódio somente se estanca, e somente o libera da sua
própria dor, pelo perdão. Sacudido pela tormenta das suas paixões, ele nem
percebe que também sofre, e que continua retido, indefinidamente, no processo
que ele próprio criou. Se conseguirmos despertá-lo para essas verdades,
estaremos começando a ajudá-lo.
Nem sempre
lhe adianta uma bela pregação moral, sobre as virtudes teológicas do perdão.
Ele não se mostrará sensível ao apelo, enquanto não se convencer de que isso é
uma realidade irresistível, que o interessa pessoalmente.
Às vezes,
basta uma pergunta bem colocada, no momento oportuno. Acha ele, por exemplo,
que, com mais um século ou dois de rancor, vai conseguir o que não conseguiu em
dois ou três? Pretende continuar preso à roda-viva da aflição? Por quanto
tempo? Não está cansado? Não deseja experimentar ao menos um pouco de paz? Pare
e reflita, medite, procure encarar o processo, com objetividade e sangue-frio,
como se estivesse apreciando um caso, não o seu caso. Por que manter dois
Espíritos amarrados, vida após vida, revezando-se nas posições de perseguidor e
perseguido? Além do mais, a vítima às vezes se lhe escapa irrevogavelmente das
mãos pelo próprio sofrimento que lhe é infligido, pelo despertamento de seu
Espírito, pelo esforço que faz em ajustar-se perante as leis divinas. E então o
perseguidor não terá mais como atingi-lo. Poderá ainda insistir em persegui-lo
indiretamente, através de seres que lhe são caros, mas isto é uma vingança
frustrada e o satisfaz ainda menos do que a outra. Ao longo do tempo ele ficará
falando sozinho, na alienação da sua vingança sem objeto. Um dia despertará,
afinal, para retomar a sua caminhada. E por que esperar tantos desenganos, se
esse dia pode ser hoje, agora?
DIALOGO COM AS SOMBRAS
HERMÍNIO C.MIRANDA
DIALOGO COM AS SOMBRAS
HERMÍNIO C.MIRANDA
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