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22 de jun. de 2013

30 - O DESENVOLVIMENTO DO DIÁLOGO. FIXAÇÕES. CACOETES. DORES “FÍSICAS”. DEFORMAÇÕES. MUTILAÇÕES.



      Pouco a pouco, o diálogo vai se desenvolvendo, a partir de uma espécie de monólogo, pois, no princípio, como vimos, é necessário deixar o Espírito falar, para que informe sobre si mesmo, o que acaba acontecendo. Muitos o fazem logo de início, dizendo pron­tamente a que vieram e o que pretendem. Mesmo a estes, porém, é preciso deixar falar, a fim de nos aproximarmos do âmago de seus problemas. Outros são bem mais artificiosos. Usam da ironia, fogem às perguntas, respondendo-nos com outras perguntas ou com sutis evasivas, que nada dizem. É comum tentarem envolver o grupo todo na conversa. Várias artimanhas são empregadas para esse fim. Dirigem perguntas aos demais circunstantes; dizem gracejos, para provocar o riso; tentam captar a atenção por meio de gestos e toques, nos braços ou nas mãos dos que lhes ficam mais próximos; ensaiam a indução hipnótica ou o passe magnético. Muita atenção com estes artifícios. Eles trazem em si uma sutileza perigosa e en­volvente, pois constituem uma técnica de penetrar o psiquismo alheio.
Um companheiro esclarecido e experimentado que, do mundo invisível, nos orientava, costumava sempre dar uma palavra inicial, de estímulo e encorajamento, para as árduas tarefas que nos espe­ravam cada noite, todas as semanas. Ele tinha o hábito de fazer uma saudação geral, e depois dirigir-se a cada um de nós em par­ticular, com uma palavra mais pessoal, afetuosa e cordial. Seu objetivo não era o de distinguir este ou aquele, e nem mesmo de dar conselhos individuais sobre nossos problemas humanos; era apenas o de estabelecer, entre nós todos e ele, um vínculo positivo, que nos predispunha ao trabalho em equipe e certamente contri­buía para que nos mantivéssemos, todos, em boa faixa de equilíbrio e concentração. Suas palavras singelas, a cada um de nós, criavam, pois, este elo, necessário ao trabalho. Neste caso, a técnica era obviamente utilizada para o bem, mas, sem dúvida alguma, os Es­píritos desarmonizados também a conhecem e procuram empre­gá-la, com finalidades muito diversas. Se um companheiro desavi­sado responde, mesmo com um simples sorriso, os resultados podem se tornar desastrosos. Tivemos disso um exemplo, certa vez, quando alguém, em nosso grupo, achou graça num comentário do manifes­tante. O Espírito começou a dirigir-se a ele, esquecendo aparen­temente a presença do doutrinador e suas palavras, pois isto faz parte da técnica. Como o companheiro correspondeu à sua abor­dagem, o Espírito sentiu-se à vontade para prosseguir e foi muito franco e espontâneo ao manifestar sua satisfação, por ver que en­contrava apoio num dos componentes do grupo, muito embora soubéssemos perfeitamente que este não o estava apoiando, mas certamente o estava favorecendo involuntariamente. Sentiu-se for­talecido e disse, mesmo, após longo tempo de conversa, que não 
se retirava — esta é outra técnica intimidadora, que ainda estuda­remos — com a clara intenção de desmoralizar o doutrinador, que ficaria falando sozinho.
Há, pois, excelentes razões para manter como regra, de rarís­simas exceções, o princípio de deixar que apenas o doutrinador fale com o manifestante. Ë através daquele que atuam os Espíritos orientadores, que ficariam com seu esforço dispersado se tivessem que dar atenção e atuar, via intuição, sobre todos os componentes do grupo incumbidos ou autorizados a falar com o Espírito.
O doutrinador tem que estar, assim, bem atento aos seus com­panheiros encarnados, em torno da mesa, médiuns ou não, para que se mantenham firmes nas suas posições, o que é importante para o desenvolvimento das tarefas. Estes companheiros não devem fe­char-se na indiferença, quanto ao que se passa, pois emprestam seu apoio vibratório silencioso ao doutrinador; mas não devem cometer o engano de se envolver na conversa, a ponto de, mesmo mental­mente, interferir no difícil diálogo que o doutrinador está tentando estabelecer, para perscrutar o arcabouço psicológico e moral do seu interlocutor invisível.
Às vezes, os circunstantes encarnados, não bem afinados afetiva­mente com o doutrinador, podem introduzir perigosos fatores de desagregação no grupo, se persistirem em acompanhar mentalmente a doutrinação, com um senso crítico imprudente, imaginando o que diriam em tais circunstâncias. Os Espíritos manifestantes têm, fre­qüentemente, condições de captar-lhes o pensamento e, se o fize­rem, certamente tirarão partido da discrepância, mesmo que ela fique imanifesta. Por isso, tanto se insiste na importância da fra­ternidade, entendimento e compreensão entre todos os componentes do grupo encarnado. Não que o doutrinador seja infalível, perfeito, nem que esteja sempre certo e com a razão; mas ele precisará do apoio e da compreensão de seus companheiros, ainda que tenha falhado; e, com freqüência, ele falha mesmo, porque o terreno em que pisamos, no trato com esses irmãos desarvorados. é difícil. imprevisível e traiçoeiro.
Dessa forma, alguém que não possa concordar com os métodos empregados pelo doutrinador, a ponto de tornar-se criticamente negativo, deve afastar-se do grupo. Ê possível, claro, que ele esteja certo, e o doutrinador errado; mas é melhor excluir-se, do que permanecer no grupo como um ponto de atrito oculto, que mina o trabalho. Se não pode ajudar, que, pelo menos, não acarrete maio­res dificuldades. Se ele estiver certo, na maneira de apreciar o trabalho do doutrinador, e este não possuir, mesmo, condições para a sua tarefa, as coisas encaminhar-se-ão para um desfecho natural; se apenas critica e discorda em razão de distorções de sua própria psicologia, então nada tem a contribuir de bom para o grupo e poderá acarretar-lhe considerável dano.
Lembremos, pois, a validade da regra que recomenda que apenas o doutrinador fale com o Espírito manifestante. É comum que este procure burlar a norma, tentando arrastar outros membros do grupo ao debate. Convém a eles a generalização da conversa, que afasta o doutrinador e o coloca mais ou menos à margem, numa técnica muito sutil de desmoralização.
Sob condições especiais, no entanto, é possível que ocorra a necessidade, ou a conveniência de alguém mais falar. Pode ser, por exemplo, que alguém, no grupo, tenha qualquer problema pessoal com o Espírito manifestante, e se sinta fortemente impelido a dizer-lhe uma palavra de conciliação, fazer-lhe um pedido de perdão, um gesto de fraternidade mais objetivo, além do pensa­mento. Também pode acontecer que o Espírito manifestante sinta real necessidade de uma palavra direta, com alguém presente que, por amá-lo particularmente, pode ajudar a despertá-lo, com a emo­ção de uma voz que há muito não ouve, ou com um gesto de que se lembre com saudade.
Em casos assim, o doutrinador julgará, segundo sua intuição ou a instrução dos mentores, permitindo que outra pessoa fale ao Espírito. Claro que, mesmo assim, deve continuar atento, seguindo com extremo cuidado o diálogo, para retomá-lo quando julgar ne­cessário, porque cabe a ele a responsabilidade por esse aspecto da tarefa; é ele quem está preparado para ela, em vista de suas ligações com os companheiros espirituais, através dos dispositivos especiais a que nos referimos alhures, neste livro.
Fora desses casos, que insistimos em qualificar de excepcio­nais, deve prevalecer a regra geral do silêncio e da sustentação psicológica aos médiuns e ao doutrinador.
Outra norma subsidiária: os circunstantes, como componentes encarnados do grupo, vigiem bem seus pensamentos. Mantenham-se atentos ao diálogo, mas não se envolvam nele, nem mesmo por palavras inarticuladas, ou seja, apenas pensadas.
Enquanto isso se passa, a conversa prossegue. Ainda não dis­põe, o doutrinador, de elementos suficientes para formular um juízo acerca do caso que tem diante de si. Talvez já saiba, por exemplo, a que veio o Espírito, ou seja, descobriu a razão pela qual foi atraido ao grupo. Estamos tentando, digamos, subtrair, de sua influência obsessiva, alguém que nos pediu ajuda. Mas é preciso saber por que ele (ou ela) persegue o companheiro encarnado. Qual a sua ligação com o obsidiado? De onde vem, no tempo e no espaço, o choque que se criou entre eles? Em suma: quais são as fixações do Espírito? Todo processo obsessivo tem o seu núcleo: traição, vingança, espoliação, desamor. É, quase sempre, um caso pessoal, de conotações essencialmente humanas, com problemas sus­citados no relacionamento. Dificilmente um Espírito obsidia outro apenas porque discorda dele em questões filosóficas ou religiosas, embora isto também seja possível, em casos extremos de fanatismo apaixonado.
Deixemo-lo falar, mas não tudo quanto queira, senão ficará andando em círculo, à volta de sua idéia central. Neste caso, con­tinuará a repetir incessantemente a mesma cantilena trágica: a vingança, o ódio, a impossibilidade do perdão, o desejo de fazer a vítima arrastar-se no chão, como um louco varrido, e coisas se­melhantes. O doutrinador precisa ter bastante habilidade para mudar o rumo de seu pensamento. Terá que fazê-lo, não obstante, com muita sutileza, arriscando, aqui e ali, uma pergunta mais pes­soal, falando-lhe de uma passagem evangélica, que se aplique particularmente ao seu caso e sempre haverá uma ou mais, que se adaptam perfeitamente às circunstâncias. Deixe-o falar, porém. Se grita e esbraveja, procure apaziguá-lo. Não se esquecer de que, por mais errado que esteja, no seu ódio irracional, ele está con­vencido dos seus direitos e, até mesmo, da cobertura divina. Muitos são os que invocam os dispositivos da Lei Maior, para exercerem suas vinganças e perseguições. Além do mais — dizem —, se podem fazer aquilo, é que Deus o permite. Ele não tem poderes para fazê-lo cessar tudo? Por que não exerce tais poderes?
Atenção, pois, para essas idéias fixas. Por mais voltas que dê o Espírito, mesmo com a intenção consciente de ocultar sua moti­vação, ele não conseguirá isso por muito tempo.
No entanto, é preciso ajudá-lo a quebrar o terrível círculo vicioso em que se debate. Veja bem: ajudá-lo a quebrar, não quebrar, arrancá-lo à força. Ele tem que sair com seu próprio esforço. Ajudar a fazer não é o mesmo que fazer, pelos outros, aquilo que lhes compete realizar.
Por outro lado, a fixação é, às vezes, tão pronunciada e tão absorvente, que o Espírito não tem condições, sequer, de ouvir o doutrinador, ou, pelo menos, não reage de maneira inteligível ao que este lhe diz. Isto não significa que o doutrinador deve calar-se; continue a falar-lhe, que as palavras irão insensivelmente se depo­sitando nele, e mesmo que ele pareça não ouvir — e isso ocorre, mesmo, em certos casos — seu próprio espírito sente as vibrações fraternas que sustentam as palavras. Se é que o doutrinador real­mente sente o que fala ou, melhor ainda, fala o que de fato sente.
Aguarde-se, pois, o momento de ajudá-lo a sair um pouco de si mesmo. Tem que haver, na sua memória, outras lembranças, outros sentimentos e até mesmo outras angústias, além daquela que constitui o núcleo da sua problemática. Coloque, de vez em quando, uma pergunta diferente, procurando atraí-lo para outras áreas da sua memória. Como, por exemplo: teve filhos? Que fazia para viver? Crê em Deus? Onde viveu? Quando aconteceu o drama? Tem noticias de amigos e parentes daquela época?
É claro, porém, que essas perguntas não devem ser desfechadas numa espécie de bombardeio ou de interrogatório. Ninguém gosta de submeter-se a devassas íntimas. Com freqüência, os ma­nifestantes reagem, perguntando se estão sendo forçados a pro­cessos inquisitoriais. Ou, simplesmente, se recusam a responder. Ou dão respostas evasivas. ..... respondem.
Nem sempre estarão prontos para nos ajudarem a ajudá-los, logo nos primeiros contactos. O processo pode alongar-se por muito tempo, até que adquiram confiança em nós e nas nossas intenções.
O objetivo das perguntas não é, obviamente, o de satisfazer a uma curiosidade malsã e, por isso, devem limitar-se a conduzir a conversação, fornecendo-lhe pontos de apoio, sobre os quais ela possa expandir-se, a fim de afastar o pensamento do comunicante, ainda que temporariamente, do núcleo central que o bloqueia e o impede até mesmo de buscar a saida daquele círculo de fogo e lágrimas em que se encerrou inadvertidamente. Não nos esque­çamos, porém, de que espontaneamente ele não sairá, não porque não queira, mas porque não sabe. Sua vingança é a própria razão de ser de sua vida; como vai entregá-la a alguém — a um desconhecido bisbilhoteiro, como o doutrinador — a troco de uma reali­dade penosa, que é aquele momento patético em que ele descobre que a causa da sua dor está em si mesmo, e não na pessoa que ele persegue e odeia?
Além das fixações penosas, os Espíritos conturbados costumam apresentar cacoetes, sob a forma de trejeitos e contrações, ou, ainda, mutilações e deformações perispirituais. É certo que tudo isso está ligado ao problema interior que os atormenta.
Já tivemos oportunidade de observar esses pormenores, aparen­temente irrelevantes, de muitas maneiras e sob variadas condições. Vamos a alguns exemplos: citei alhures, neste livro, o episódio do pobre irmão que tinha um braço paralisado. Notei que durante o diálogo ele não movimentava aquele membro. Por que seria? No momento que me pareceu oportuno, sem precipitação, perguntei-lhe o que havia com o seu braço. Ele não quis dizer. Ou, provavel­mente, nem saberia conscientemente a razão, porque costuma fun­cionar, nestes casos, um mecanismo de defesa, que parece construir uma barricada às nossas costas, para levar-nos a um conveniente esquecimento do passado. Simplesmente “esquecemos” das causas que nos levaram àquela situação, para poder fixar-nos no objeto do ódio e da vingança. Não sei, ao certo, se ele sabia a razão da paralisia de seu braço. Se sabia, tentava ignorá-la. Quando me propus a curá-lo por meio de passes, ele recusou — sem muita convicção — dizendo que, se ficasse curado, seria apenas para ter mais um braço para empunhar o chicote - -. - Mesmo assim, levan­tei-me, orei e dei-lhe passes ao longo do braço imobilizado, e vi logo que ele reagia, sentindo o impacto dos fluídos que o alcan­çavam. E, realmente, ficou bom, voltando a movimentar o braço. Só então, ao que parece, foi possível liberar o seu mecanismo de censura, e ele se lembrou da cena de um passado distante, quando sacrificou, a punhal, a esposa e os filhos, que ele acreditava não fossem seus, pois achava que ela o havia traído. Exposto o âmago do problema, seu drama resolveu-se.
Outro sentia, ainda, a dor aguda de uma lança que o penetrara há séculos, quando terminou uma existência de inconcebíveis desa­tinos. Continuava preso ao local onde exercera um poder discri­cionário, a ouvir os comentários de visitantes e turistas sobre suas próprias atrocidades.
Um terceiro tinha a voz rouca — seria um antigo câncer? —e quase inaudível. Sua “cura”, por meio de passes, levou-o a um reexame bem menos apaixonado da figura de seu doutrinador, que ele chamara até de porco!
Outro companheiro desorientado conservava feia cicatriz sobre o olho direito, porque ela lhe dava uma aparência terrível, que atemorizava aqueles a quem ele queria perseguir e afligir.
Em uma oportunidade, tivemos também um caso, intensamente dramático, de um pobre sofredor, guilhotinado na França, durante a Revolução. Desde então — segundo apuramos em seguida — tra­zia a cabeça “destacada do corpo”, na mão direita, segura pelos cabelos. O diálogo inicial foi difícil, pois convicto de que estava sem cabeça, ele não tinha condições de falar. A custo, porém, o fui convencendo de que podia falar através do médium. Vivia apa­vorado ante a idéia de perder de vista a cabeça e nunca mais recuperá-la. Enquanto a tivesse ali, à mão, mesmo decepada, ali­mentava a esperança de “repô-la” no lugar. Isto foi possível fazer, com a graça de Deus. Oramos e lhe demos passes. Subitamente, ele sentiu que a cabeça voltara à sua posição correta. Louco de alegria, ele apalpava-se e só sabia repetir:
— Ela está aqui! Ela está aqui!...
E conferia, com a ponta dos dedos, toda a anatomia facial e craniana: os olhos, o nariz, a boca, as orelhas. Estava tudo lá. E dizia:
— Posso falar! Estou falando!
Queria saber quem fizera o “milagre” de “colar” a cabeça no­vamente no lugar próprio. Quanto ao que lhe acontecera, não acre­ditava que Deus o tivesse feito, para castigá-lo, pois Deus não permitiria que um homem andasse sem cabeça por tanto tempo. Levo-o cautelosamente para uma introspecção, tentando fazer que ele encontre em si mesmo a razão do seu espantoso sofrimento. Explico-lhe que vivemos muitas existências, embora as esqueçamos. Em alguma de suas vidas anteriores ele encontraria a explicação. “Provavelmente”, digo-lhe, “você andou também cortando a cabeça de alguém”. É verdade, isso. Ele se lembra, agora, que eram en­fiéis a Jeová e, depois de condenados, ele os executava. Reviu até a fila de espera...
Casos mais sérios de deformações espirituais exigem o con­curso de médiuns especiais, não apenas para recebê-los, por incorporação, como, também, para ajudar na recomposição da forma “física”, para o que é necessário dispor de algum ectoplasma, além dos passes habituais.
Mesmo para o companheiro a que há pouco nos referimos, de cabeça decepada, o concurso de um médium de efeitos físicos foi decisivo. Enquanto lhe dávamos passes, ele parecia absorver os fluídos avidamente, procurando impregnar-se deles, com movimen­tos aflitivos das mãos.
Em outros casos de deformações perispirituais e zoantropia, o médium expeliu realmente grande quantidade de ectoplasma pela boca, o que se percebeu, mesmo sem a vidência, pelos movimentos irreprimíveis que fazia como se estivesse vomitando em seco.
Ainda falaremos sobre a ectoplasmia nos grupos mediúnicos, porque ela tem outras aplicações, além da, que há pouco mencio­namos, de ajudar a reconstituir lesões perispirituais e recompor seres reduzidos a formações animalizadas.

*

Mas o diálogo prossegue. Suponhamos já ter sido possível iden­tificar o núcleo principal do problema. Já descobrimos as razões fundamentais do seu drama. Não obstante, muito falta ainda para dissolver e dispersar aquele núcleo doloroso. Mesmo com tudo isso presente à sua consciência, ele ainda insiste em racionalizar a seu jeito, o quadro que se lhe apresenta. Continua a submetê-lo ao seu próprio juízo e a invocar o seu direito à cobrança.
Já discutimos alguns aspectos teóricos desta questão. Teorica­mente, sim, ele pode cobrar. Não que tenha um direito assegurado nos códigos divinos, porque a idéia de direito implicaria, talvez, a da impunidade. Não sei se os juristas que me lêem concordam com isto, mas parece que não podemos ser punidos por exercer uma ação que o direito nos assegura. É claro que não falo aqui no direito humano, imperfeita imitação dos conceitos superiores do Di­reito Cósmico, do qual conhecemos as primeiras letras. Creio que, se Deus me assegurasse o direito de cobrar, impunemente, pela vin­gança, uma falta cometida contra mim, sua lei não teria sido muito melhor do que a nossa. Não obstante, tanto numa, como noutra, existe a idéia básica da reparação. A sociedade humana tenta a reparação pelos caminhos da punição; a divina, pela regeneração.
O criminoso terreno deve pagar pelo que fez, independentemente do que acontece com aquele a quem ele prejudicou. A lei humana não toma conhecimento da sobrevivência do espírito. A lei divina pede do ser, através de sua própria consciência, que ele se recom­ponha perante a sua vítima. Ante a lei humana, a prisão ou a indenização redimem o criminoso; a lei divina vai adiante e lhe pede a reconciliação, mesmo que, em face dos códigos terrenos, ele esteja quite. Por outro lado, a lei humana não leva em conta o fato de que o homem sofre justamente aquilo que está nos seus compromissos cármicos, respondendo por desatinos cometidos. E se não colocamos um ponto final nessa espiral de horrores, ela conti­nuará a abrir-se para baixo e para o futuro, cada vez mais dolo­rosa e ampla.
Dessa forma, não haveria direito líquido e certo de cobrarmos, nós mesmos, as faltas cometidas contra nós, pois que direito é esse, que reabre o ciclo da culpa e nos obriga a pagar aquilo que con­sideramos simples reparação?
Mas, como explicar tudo isso, de forma convincente, ao Espí­rito tumultuado pela paixão da vingança? Como iremos mostrar-lhe a falácia da sua filosofia da reparação? Em muitos casos, ele já está convencido dessa realidade, ou seja, a de que, exercendo a vingança por suas próprias mãos, ele se inscreve novamente como culpado, no tribunal invisível da sua própria consciência. Não im­porta. Ele quer cobrar, assim mesmo. Quando chegar a hora da dor, ele arcará com as suas responsabilidades, e as sofrerá, diz ele, com prazer, porque pelo menos terá saciado o seu rancor. Não sabe ele, porém, que o rancor não se satisfaz nunca, muito menos pelos caminhos do sofrimento alheio. Por mais absurda que pareça a tese ao vingador, o seu ódio somente se estanca, e somente o libera da sua própria dor, pelo perdão. Sacudido pela tormenta das suas paixões, ele nem percebe que também sofre, e que con­tinua retido, indefinidamente, no processo que ele próprio criou. Se conseguirmos despertá-lo para essas verdades, estaremos come­çando a ajudá-lo.
Nem sempre lhe adianta uma bela pregação moral, sobre as vir­tudes teológicas do perdão. Ele não se mostrará sensível ao apelo, enquanto não se convencer de que isso é uma realidade irresistível, que o interessa pessoalmente.
Às vezes, basta uma pergunta bem colocada, no momento opor­tuno. Acha ele, por exemplo, que, com mais um século ou dois de rancor, vai conseguir o que não conseguiu em dois ou três? Pre­tende continuar preso à roda-viva da aflição? Por quanto tempo? Não está cansado? Não deseja experimentar ao menos um pouco de paz? Pare e reflita, medite, procure encarar o processo, com objetividade e sangue-frio, como se estivesse apreciando um caso, não o seu caso. Por que manter dois Espíritos amarrados, vida após vida, revezando-se nas posições de perseguidor e perseguido? Além do mais, a vítima às vezes se lhe escapa irrevogavelmente das mãos pelo próprio sofrimento que lhe é infligido, pelo des­pertamento de seu Espírito, pelo esforço que faz em ajustar-se perante as leis divinas. E então o perseguidor não terá mais como atingi-lo. Poderá ainda insistir em persegui-lo indiretamente, atra­vés de seres que lhe são caros, mas isto é uma vingança frustrada e o satisfaz ainda menos do que a outra. Ao longo do tempo ele ficará falando sozinho, na alienação da sua vingança sem objeto. Um dia despertará, afinal, para retomar a sua caminhada. E por que esperar tantos desenganos, se esse dia pode ser hoje, agora?



DIALOGO COM AS SOMBRAS
HERMÍNIO C.MIRANDA
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           

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