Culpa
Por detrás de nossas tristezas e frustrações, de nossas
insatisfações na vida, de nossos tédios e angústia, está um sentimento, o mais
arraigado em nosso comportamento e responsável por grandes sofrimentos
psicológicos, que é o Sentimento de Culpa. O sentimento de culpa é o apego ao
passado, é uma tristeza por alguém não ter sido como deveria ter sido, é uma
tristeza por ter cometido algum erro que não deveria ter cometido. O núcleo do
sentimento de culpa são estas palavras: "Não deveria..."
A Culpa é a frustração pela distância entre o que nós fomos e a
imagem de como nós deveríamos ter sido. Nela consiste a base para a
auto-tortura. Na culpa, dividimo-nos em duas pessoas: uma real, má, errada,
ruim e uma ideal, boa, certa e que tortura a outra. Dentro de nós processa-se
um julgamento em que o Eu ideal, imaginário, é o Juiz e o Eu real, concreto,
humano, é o Réu. O Eu ideal sempre faz exigências impossíveis e
perfeccionistas.
Assim, quando estamos atorment ados pelo perfeccionismo, estamos
absolutamente sem saída. Como o pensamento nos exige algo impossível, nunca o
nosso Eu real poderá atendê-lo. Este é um ponto fundamental.Muitas pessoas
dedicam a sua vida a tentar realizar a concepção do que elas devem ser, em vez
de se realizarem a si mesmas.
A diferença entre auto-realização e realização da imagem de como
deveríamos ser é muito mais importante. A maioria das pessoas vive apenas em
função da sua Imagem Real e este é um instrumento fenomenal para se fazer o
jogo preferido do neurótico: a auto-tortura, o auto aborrecimento, o
auto-castigo, a autopunição, a culpa.
Quanto maior for a expectativa a nosso respeito, quanto maior for o
modelo perfeccionista de como deve ser a nossa vida, maior será o nosso
sentimento de Culpa. A culpa é a tristeza por não sermos perfeitos, é a
tristeza por não sermos Deus, por não sermos infalíveis; é um profundo
sentimento de orgulho e onipotência; é uma incapacidade de lidar com o erro,
com a imperfeição; é um desejo frustrado; é o contato direto com a realidade
humana, em contraste com as suas intenções perfeccionistas, com os seus
pensamentos megalomaníacos a respeito de si mesmo. E o mais grave é que
aprendemos o sentimento de culpa como virtude!
A culpa sempre se esconde atrás da máscara do auto-aperfeiçoamento
como garantia de mudança e nunca dá certo. Os erros dos quais nos culpamos são
aqueles que menos corrigimos. A lista de nossos "pecados" no
confessionário é sempre a mesma.
A Culpa, longe de nos proporcionar incentivo ao crescimento,
faz-nos gastar as energias numa lamentação interior por aquilo que já ocorreu,
ao invés de as gastarmos em novas coisas, novas ações e novos comportamentos.
Por isto mesmo, em todas as linhas terapêuticas, este é um sentimento
considerado doentio.
Não existe nenhuma linha de tratamento psicológico que não esteja
interessado em tirar dos seus pacientes o sentimento de culpa. A culpa é um
auto-desprezo, um auto-desrespeito pela natureza humana, nos seus limites e na
sua fragilidade. A culpa é uma vingança de nós mesmos por não termos atendido a
expectativa de alguém a nosso respeito, seja esta expectativa clara e
explícita, ou seja uma expectativa interiorizada no decorrer da nossa vida.
Por isto é que se diz que, ao nos sentirmos culpados, estamos
alienados de nós mesmos e a nossa recriminação interna não é, nem mais nem
menos, do que vozes recriminatórias dos nossos pais, nossas mães, nossos
mestres ou outras pessoas ainda dentro de nós. Mas aquilo que nos leva a esse
sentimento de culpa, aquilo que alimenta esta nossa doença autodestrutiva são algumas
crenças falsas.
Trabalhar o sentimento de culpa é, primordialmente, descobrir as
convicções falsas que existem em nós, aquelas verdades em que cremos que são
errôneas e nos levam a este sentimento. A primeira delas é a crença na
possibilidade da perfeição. Quem acredita que é possível ser perfeito, quem
acha que está no mundo para ser perfeito, quem acha que deve procurar na sua
vida a perfeição, viverá necessariamente atormentado pelo sentimento de culpa.
A expectativa perfeccionista da vida é um produto da nossa fantasia, é um
conceito alienado de que é possível não errar, que é possível viver sem cometer
erros.
Quanto maior for a discrepância entre a realidade objetiva e as
nossas fantasias, entre aquilo que podemos nos tornar através do nosso verdadeiro
potencial e os conceitos idealistas impostos, tanto maior será o nosso esforço
na vida e maior a nossa frustração. Respondendo a esta crença opressora da
perfeição, atuamos num papel que não tem fundamento real nas nossas
necessidades. Nós nos tornamos falsos, evitamos encarar de frente as nossas
limitações e desempenhamos papéis sem base em nossa capacidade. Construímos um
inimigo dentro de nós, que é o ideal imaginário de como deveríamos ser e não de
como realmente somos. Respondendo a um ideal de perfeição, nós desenvolvemos
uma fachada falsa para manipular e impressionar os outros.
É muito comum, no relacionamento conjugal, marido e mulher não
estarem amando um ao outro e, sim, amando a imagem de perfeição que cada um
espera do outro. É claro que nenhum dos parceiros consegue corresponder a esta
expectativa irreal e a frustração mútua de não encontrar a perfeição gera
tensões e hostilidades, e um jogo mútuo de culpa. Esta situação se aplica a
todas as relações onde as pessoas acreditam que amar o outro é ser perfeito.
Quando voltamos para nós exigências perfeccionistas, dividimo-nos
neuroticamente para atender ao irreal. Embora as pessoas acreditem que errar é
humano, elas simplesmente não acreditam que são humanas! Embora digam que a
perfeição não existe, continuam a se torturar e a se punir e continuam a
torturar e a punir os outros por não corresponderem a um ideal perfeccionista
do qual não querem abrir mão.
Outra crença que nos leva à Culpa, esta talvez mais sutil, mais
encoberta e profunda em nossa vida é acreditarmos que há uma relação necessária
entre o Erro e a Culpa. É a vinculação automática entre erro e culpa. Quase
todas as pessoas a quem temos perguntado de onde vêm os seus sentimentos de
culpa nos respondem taxativamente que vêm de seus erros.
Acreditamos que a culpa é uma decorrência natural do erro, que não
pode, de maneira alguma, haver erro sem haver culpa. Se acreditamos nisto,
estamos num problema insolúvel. Ou vamos passar a vida inteira tentando não
errar para não sentirmos culpa e isto é impossível porque sempre haverá erros
em nossa vida ou então passaremos a vida inteira nos sentindo culpados porque
sempre erramos.
Essa vinculação causal entre erro e culpa é profundamente falsa. A
culpa não decorre do erro, mas da maneira como nos colocamos diante do erro;
vem do nosso conceito relativo ao erro, vem da nossa raiva por termos errado.
Uma coisa é o erro, outra coisa é a culpa; erros são erros, culpa é culpa. São
duas coisas distintas, separadas, e que nós unimos de má fé, a fim de não
deixarmos saída para o nosso sentimento de culpa. O erro é o modo de se fazer
algo diferente, fora de algum padrão.
O que é chamado erro é a saída fora de um modelo determinado, que
pode ser errado hoje e não amanhã, pode ser errado num país e não ser errado em
outro. A culpa é um sentimento, vem de nós, vem da crença de que é errado
errar, que não podemos errar, que devemos ser castigados pelas faltas
cometidas; crença de que a cada erro deve corresponder necessariamente um
castigo, de que a cada falta deve corresponder uma punição. Aliás, o sentimento
de culpa é a punição que damos a nós mesmos pelo erro cometido. Não é possível
não errar, o erro é inerente à natureza humana, ele é necessário a nossa vida.
Na perfeição humana está incluída a imperfeição. Só crescemos através do erro.
As pessoas confundem assumir o erro com sentir culpa. Assumir o
erro é aceitar que erramos, é nos responsabilizarmos pelo que fizemos ou
deixamos de fazer. Mas quando acreditamos que a culpa decorre do nosso erro,
tentamos imputar a outros a responsabilidade dos nossos erros, numa tentativa
infrutífera de acabar com a nossa culpa.
A propósito do erro, há um texto interessantíssimo no livro
"Buscando Ser o que Eu Sou", de Ilke Praha, que diz: "O perfeccionismo
é uma morte lenta. Se tudo se cumprisse à risca, como eu gostaria, exatamente
como planejara, jamais experimentaria algo novo, minha vida seria um repetição
infinda de sucessos já vividos. Quando cometo um erro vivo algo inesperado.
Algumas vezes reajo ao cometer erros como se tivesse traído a mim mesmo.
O medo de cometer erros parece fundamentar-se na recôndita
presunção de que sou potencialmente perfeito e de que, se for muito cuidadoso,
não perderei o céu. Contudo, o erro é uma demonstração de como eu sou, é um
solavanco no caminho que tracei, um lembrete de que não estou lidando com os
fatos. Quando der ouvidos aos meus erros, ao invés de me lamentar por dentro,
terei crescido". Este é o texto.
Algumas pessoas nos perguntam: "Mas como avançar em relação a
este sentimento, como arrancar de mim este hábito de me deprimir com os erros
cometidos?". Só existe uma saída para o sentimento de culpa. Façamos uma
fantasia: Imaginemos por um instante que estamos à morte e nossos sentimentos
deste momento são de angústia, tristeza e frustração por todos os erros
cometidos, por tudo o que deveríamos ter feito e não fizemos; remorsos pelos
nossos fracassos como pai, como mãe, como profissional, como esposo, como
esposa, como religioso, como cidadão, mas, ao mesmo tempo, estamos com um
profundo desejo de morrer em paz, de sair desse processo íntimo de angústia e
morrer tranquilos.
Qual a única palavra que, se pronunciada neste momento, sentida com
todo coração, teria o poder de transformar a nossa dor em alegria, o nosso
conflito em harmonia, a nossa tristeza em felicidade? Somente uma palavra tem
essa magia. A palavra é: - Perdão.
O Perdão é uma palavra perdida em nossa vida. O primeiro sentimento
que se perde no caminho da loucura é o sentimento de perdão, o sentimento de
Auto-Perdão. Se a culpa é a vergonha da queda, o auto-perdão é o elo entre a
queda e o levantar de novo. O auto-perdão é o recomeço da brincadeira depois do
tombo: - "Eu me perdôo pelos erros cometidos, eu me perdôo por não ser
perfeito, eu me perdôo pela minha natureza humana, eu me perdôo pelas minhas
limitações, eu me perdôo por não ser onipotente, por não ser onipresente, por
não ser onisciente, eu me perdôo por...". O perdão é sempre assim mesmo, é
pessoal e intransferível.
O perdão aos outros é apenas um modo de dizermos aos outros que já
nos perdoamos. Perdoarmo-nos é restabelecer a nossa própria unidade, a nossa
inteireza diante da vida, é unir outra vez o que a culpa dividiu, é uma
aceitação integral daquilo que já aconteceu, daquilo que já passou, daquilo que
já não tem jeito; é o encontro corajoso e amoroso com a realidade.
Somente aqueles que desenvolveram a capacidade de auto-perdão
conseguem energia para uma vida psicológica sadia. A criança faz isto muito
bem. O perdão é a própria aceitação da vida do jeito que ela é, nos altos e nos
baixos. O auto-perdão é a capacidade de dizer adeus ao passado, é a aceitação
de que o passado é uma fantasia, é apenas saber perder o que já está perdido. O
auto-perdão é um sim à vida que nos rodeia agora, é uma adesão ao presente, à
única coisa viva que possuímos, que são nossas possibilidades neste momento.
Não podemos abraçar o presente, a vida, o passado e a morte ao mesmo tempo.
O perdão é uma opção para a vida, o auto-perdão é a paciência
diante da escuridão, é o vislumbre da aurora no final da noite. O auto-perdão é
o sacudir da poeira, é a renovação da autoestima e da alegria de viver, é o
agradecimento por sabermos que mais importante do que termos cometido um erro é
estarmos vivos, é estarmos presentes.
Para encerrar este tema, quero sugerir-lhes uma reflexão sobre este
texto escrito por Frederick Pearls: "Que isto fique para o homem! Tentar
ser algo que não é, ter idéias que não são atingíveis , ter a praga do
perfeccionismo de forma a estar livre de críticas, é abrir a senda infinita da
tortura mental.
Amigo, não seja um perfeccionista. Perfeccionismo é uma maldição e
uma prisão. Quanto mais você treme, mais erra o alvo. Amigo, não tenha medo de
erros, erros não são pecados, erros são formas de fazer algo de maneira
diferente, talvez criativamente nova. Amigo, não fique aborrecido por seus
erros. Alegre-se por eles, você teve a coragem de dar algo de si".
Antônio Roberto Soares - Psicólogo
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