32 - A PRECE
A fé e o amor são os dois grandes
instrumentos de trabalho do doutrinador. Ainda voltaremos a falar sobre o amor,
esse tema inesgotável, fonte de belezas eternas, de reservas inexauríveis de
energia criadora, de harmonias insuspeitadas, sempre a nos surpreender com o
seu infinito potencial.
A fé e o
amor causam impactos espantosos em nossos irmãos infelizes. Quantas vezes tenho
ouvido depoimentos, de comovedora sinceridade, de Espíritos aturdidos ante a
evidência desses sentimentos:
— Que fé
absurda tem você! — disse-me um deles.
Ele não
queria dizer que a minha fé era falsa, extravagante, ilógica ou irracional; ele
se surpreendia em achá-la tão legítima, tão viva, tão firme.
E acrescentou,
estupefato:
— O mundo
pode desabar em cima de você, que você não se importa.
Bem dizia
o nosso Paulo, especialista em tais assuntos, que “a fé é a garantia do que se
espera, a prova das realidades invisíveis” (Hebreus, 11:1). E que, mesmo depois
de tudo dito e vivido, subsistiriam “a fé,
a esperança e o amor, os três...” (Primeira Epístola aos Coríntios,
13:13.)
Uma fé
assim é preciso para orar pelos nossos queridos irmãos desarvorados. A força e
o poder da fé transmitem-se à prece, enunciada com emoção e sinceridade.
Citando
os seus amigos espirituais, Kardec escreve, em “O Evangelho segundo o
Espiritismo” (capítulo 28):
“Os
Espíritos hão dito sempre: “A forma nada vale, o pensamento é tudo. Ore, pois,
cada um segundo suas convicções e da maneira que mais o toque. Um bom
pensamento vale mais do que grande número de palavras com as quais nada tenha o
coração.”
Estes
ensinamentos são, na verdade, preciosos, para qualquer tipo de prece, em
qualquer oportunidade, mas são de capital importância na prece que formulamos
pelo Espírito desajustado que temos diante de nós, incorporado ao médium.
Kardec torna isto particularmente claro, quando diz, mais adiante, no mesmo
capítulo de “O Evangelho segundo o Espiritismo”:
“A
qualidade principal da prece é ser clara, simples e concisa, sem fraseologia
inútil, nem luxo de epítetos, que são meros adornos de lantejoulas. Cada
palavra deve ter alcance próprio, despertar uma idéia, pôr em vibração uma
fibra da alma. Numa palavra: deve fazer refletir. Somente sob essa condição
pode a prece alcançar o seu objetivo; de outro modo, não passa de ruído.
Entretanto, notai com que ar distraído e com que volubilidade elas são ditas,
na maioria dos casos. Vêem-se lábios a mover-se; mas, pela expressão da
fisionomia, pelo som mesmo da voz, verifica-se que ali apenas há um ato
maquinal, puramente exterior, ao qual se conserva indiferente a alma.”
Lembro
que os destaques não são meus; estão no original. De transcendental
importância, para os trabalhos de desobsessão, é a observação de que a prece
“deve fazer refletir”. Muitas vezes, é durante a prece, dita em voz alta pelo
doutrinador, ou por alguém por ele indicado no grupo, que o Espírito
manifestante faz uma pequena pausa para pensar. A prece o envolve em vibrações
pacificadoras, em uma ternura que, talvez há muito não experimente. Ela deve
ser elaborada em torno da própria temática que o companheiro nos tenha
revelado, no decorrer do diálogo conosco.
Como tudo
o mais que tentamos realizar nos grupos de desobsessão, a prece tem seu
momento psicológico ótimo, que varia, necessariamente, de um caso para outro.
Em certas ocasiões épreciso orar ainda no princípio da manifestação, em virtude
de o estado de agitação, ou de alienação, do Espírito, não nos permitir
colher, antes, um pouco da sua história e da sua motivação. O melhor, no
entanto, é esperar um pouco, aguardar esclarecimentos e informações que — nunca
é demais recomendar — não devem ser colhidas em interrogatórios e através dos
artifícios da bisbilhotice.
No
momento propício — e mais uma vez temos que recorrer à intuição e ao senso de
oportunidade — convém dirigir-se ao próprio Espírito e propor-lhe a prece.
Dificilmente ele recusará, e, ainda que o recuse, devemos fazê-la, mesmo
porque, não devemos pedir-lhe permissão para orar, e sim comunicar-lhe que
vamos fazê-lo. Basta dizer, por exemplo:
— Vamos orar?
Ou:
— Agora vou fazer
uma prece.
Como
disse, dificilmente ele se oporá. Poderá, no máximo, dar um muxoxo
desinteressado, ou fazer um comentário condescendente:
— Pode orar, se
quiser...
Curioso,
no entanto, que muito raramente eles procuram perturbar a prece. Geralmente
ouvem-na em silêncio, senão respeitoso, pelo menos comedido. Alguns, no
entanto, insistem em continuar falando, zombando ou ridicularizando. Um deles
procurou dramatizar as minhas palavras, tentando reproduzir, em gestos, que
acreditava muito cômicos, as imagens contidas no sentido das palavras
pronunciadas.
A prece
deve ser dita de preferência de pé, ao lado do companheiro manifestado, com as
mãos estendidas para ele, como que a concentrar nele as vibrações e as bênçãos
que invocamos. Alguns informam depois, ou durante a prece, que se acham
“defendidos”, “protegidos” por “couraças” e “capacetes” invioláveis, nos quais
— esperam eles — as energias suscitadas pela prece não poderiam penetrar.
Dirija a
sua prece a Deus, a Jesus ou a Maria, pedindo ajuda para o companheiro que
sofre. Se já dispõe de alguma informação sobre ele, fale especificamente de seu
problema, como um intermediário entre ele e os poderes supremos que nos
orientam e amparam. Eles se esqueceram, às vezes por séculos, e até milênios,
de que esses canais de acesso estão abertos também a eles. Não têm mais
vontade, ou interesse, de se dirigirem a Deus. Ou lhes falta coragem, por julgarem-se
além de toda recuperação, indignos e incapazes de projetarem o pensamento a tão
elevadas entidades.
Em alguns
casos, costumo orar não apenas pelo Espírito manifestante, mas como se fosse
ele próprio, com as palavras e as emoções que ele mesmo escolheria para
dirigir-se ao Pai ou a Jesus, se estivesse em condições de fazê-lo.
Certa
ocasião, muito critica e importante, a prece foi elaborada como se partindo de
nós dois: o doutrinado e o doutrinador, pois estávamos envolvidos muito
profundamente em compromissos mútuos. Dirigi-me à doce Mãe de Jesus, colocando
diante dela o problema de dois seres que haviam errado gravemente, julgando
servi-lo. Ambos havíamos sofrido, ao longo dos séculos, por causa daqueles
enganos. Já era mais do que tempo de chegarmos a um entendimento e colocarmos
ponto final naquela penosa e aflitiva desarmonia, para que, juntos, como irmãos
que éramos, conseguíssemos retomar, ambos, a nossa caminhada, sem os rancores
que nos prendiam a um passado lamentável. Fosse Ela a advogada da nossa causa e
nos ajudasse a encontrar os caminhos da paz.
Ele ouviu
a prece, em silêncio, e acabou cedendo.
São
incríveis a força e o impacto de uma prece límpida, pura, singela, escorada na
emoção e no afeto. O efeito é “milagroso”, surpreendente, ainda que nem sempre
instantâneo. São muitos os sofredores que se enquistaram de tal maneira atrás
de suas defesas e de suas couraças, que precisam de algum tempo para
deixarem-se alcançar, a ponto de realizar-se neles o milagre sempre renovado do
amor. Estes ainda riem, por algum tempo, da prece — um riso nervoso, sem
convicção. Estão com medo, pobres irmãos. Medo da emoção que os leva à crise, e
da crise que os leva à dor que os espera ao longo do extenso caminho de
volta...
Entre
continuar numa dor que já conhecem, e que se encontra anestesiada, e
entregar-se a outra que desconhecem, preferem ficar como estão. A prece muito
contribui para vencer estas últimas inibições e hesitações. Ela os leva a
alguns instantes de pausa, no curso dos seus pensamentos habituais. Representa
uma experiência da qual se desabituaram, ou com a qual não se acham
familiarizados.
Alguns
deles, quando pedimos para orar conosco, recusam-se, mas não tentam
impedir-nos. Outros, quando propomos que eles orem também, desculpam-se desajeitadamente,
dizendo que “ali não há condições”. Isto é especialmente invocado pelos
companheiros que foram prelados. Como se julgam alienados da doce intimidade
do Cristo, por exemplo, não se sentem encorajados a “falar” com Ele através da
prece. Desculpam-se, então, com a impropriedade do ambiente, a falta dos
paramentos e dos livros adequados. Não são poucos os que continuam, no
atormentado mundo espiritual em que vivem, a celebrar suas missas, oficiar os
ritos e os sacramentos a que estiveram habituados na vida terrena; mas, no
fundo, sabem que aquilo é estranho à simplicidade e à autenticidade do Cristo
e de seu Evangelho. Por isso, quando convidados a orar de verdade, sentem-se
atônitos e temerosos, embora reagindo, exteriormente, como se não dessem
nenhuma importância a qualquer ato de contrição, ou como se somente pudessem
exercê-lo com os apetrechos a que se habituaram. Não podemos esquecer-nos de
que são muitos os que praticaram, a vida inteira, ou, mesmo, vida após vida, um
culto formal e frio, aparatoso e vazio, no qual o coração e a fé não se
envolveram. Para esses pobres companheiros desarvorados, até mesmo a prece,
manifestação mais pura do diálogo entre o homem e Deus, transformou-se em mero
instrumento de poder, esvaziando-se de todo o seu elevado e nobre conteúdo.
Com essa prece aviltada e despovoada de emoção, pediram favores insólitos a
Deus, ou pronunciaram julgamento sobre o próximo. Não é de admirar, pois, que
ao cabo de tantos desenganos, passem a não crer nela, ou continuem a entender
que a prece é para isso mesmo, ou seja, para exigir favores de uma divindade
servil, cega e injusta, que nos concede aquilo que não merecemos, ou não
concede o que julgamos merecer.
A reação,
pois, difere de um caso para outro, mas pode ser grupada dentro de
classificações mais ou menos didáticas, como acima esboçado. Há, pois, os que
se comovem; os que ouvem, em respeitoso silêncio, mas ainda precisam de tempo;
os que a ridicularizam, porque temem seus efeitos; os que se recusam a
dizê-la, por julgarem-se indignos, ou não necessitados; e os que se acham de
tal maneira alienados, que oram até mesmo com certa veemência, convencidos de
que Deus, ou o Cristo, virá imediatamente em seu socorro, para livrá-los da
situação em que se encontram, diante de um doutrinador impertinente.
Um deles
tomou a iniciativa de pedir-me para orar. Disse-lhe que não me cabia autorizar
um ato desses, por me faltar autoridade para fazê-lo. Ele ainda comentou a
minha atitude, algo surpreso, e preparou-se para orar. Recolheu-se a uma
postura correta, juntando as mãos em frente dos olhos fechados do médium,
aguardou alguns momentos de silêncio respeitoso e se pôs a orar a Jesus, com
muita veemência. Falava em nome da “equipe humilde” do Cristo, e nada pedia
para eles próprios, porque o Cristo sabia de suas necessidades e aspirações;
mas pedia para nós, os componentes do grupo, que estávamos muito necessitados
de socorro e orientação. Sua prece era um tanto oratória e, de fato, depois nos
deu uma demonstração de seus recursos de pregador, falando com entusiasmo e
brilho, a uma platéia invisível a nós.
É
possível que ele fosse sincero no seu apelo, porque o fanatismo é, às vezes,
de intensa e desastrosa sinceridade; mas, no seu caso, continuei com a
impressão de que aquele era apenas mais um dos inúmeros mecanismos usados para
fuga. Na profunda intimidade do seu ser, ele deveria realmente acreditar que
era um excelente trabalhador do Cristo, a quem orava com todo o fervor.
Enquanto isso, estava ao abrigo de suas próprias contradições íntimas, de suas
responsabilidades maiores, e continuava a negacear diante da difícil decisão de
abandonar o poder e a glória, descer do pedestal de grande mestre, ou líder,
para voltar a ferir os pés descalços, pelos caminhos espinhosos da recuperação,
de coração sangrando, espicaçado pelo remorso.
Sendo,
pois, a fé, “a garantia do que se espera e a prova das realidades invisíveis”,
a prece é o convite para que a esperança se realize em nós, ou diante de nós. A
prece é o instrumento do amor grande e puro de que nos falou o Cristo; é por
ela que a caridade nos faz agentes da Divindade.
Ë por ela
que conseguimos alçar o nosso espírito, aprisionado ainda no erro, às
culminâncias da esperança. Paulo apresentou juntos a fé, a esperança e o amor.
A prece nos liga porque, apoiada na fé, contempla a esperança e ajuda-nos na
doação do amor.
DIALOGO COM AS SOMBRAS
HERMÍNIO C. MIRANDA
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