Armadilhas da Fé
Fiz nesses dias um
breve passeio pela rede, em algumas línguas, para colher pessoas, ideias e
informações sobre o tema Educação e Espiritualidade, de que faremos um
congresso internacional no ano que vem. E depois de medir um pouco a
temperatura do que anda acontecendo nesse campo na prática, nas universidades,
no mundo editorial, inspirei-me a escrever algumas reflexões sobre a
espiritualidade nesse nebuloso, mas estimulante início de milênio. Considere-se
aqui espiritualidade qualquer ligação com o divino, com a dimensão espiritual
do ser. A espiritualidade pode ou não estar vinculada a uma religião
específica. Pode-se viver a espiritualidade dentro ou fora de uma determinada
corrente religiosa.
A notícia animadora é
que há muita gente no mundo trabalhando pelo diálogo, pelo encontro, pela
convivência respeitosa e pacífica entre as pessoas de diferentes credos,
etnias, origens… Há muita gente se propondo a uma espiritualidade aberta,
questionadora, crítica, que permita a busca pessoal e o respeito à consciência
de cada um. Há igualmente muitos estudos sérios, acadêmicos, que demonstram que
a espiritualidade pode fazer bem à saúde, trazer resiliência, aumentar a
qualidade de vida, melhorar a imunidade, produzir efeitos benéficos nas
relações, promover valores solidários e pacificadores. Há pessoas propondo
práticas educacionais que levem em conta a diversidade de crenças e cultivem a
espiritualidade das novas gerações dentro de um pluralismo saudável.
Há também uma
possibilidade, antes nunca experimentada em nenhuma época histórica, do ser
humano ter acesso facilmente, rapidamente, às mais antigas ou mais recentes
religiões, movimentos, tradições. Está tudo on-line, em todas as línguas. Está
tudo publicado, em livro impresso ou eletrônico. Em poucos segundos, podemos
achar uma maravilha da poesia sufi, diversas traduções do Baghavad Gita, salmos
bíblicos, preceitos da Torá, ensinamentos das mais diferentes linhas do
Budismo, vídeos de líderes das mais diversas correntes… Ou seja, há fartos
alimentos espirituais em toda parte, disponíveis, acessíveis.
O problema começa no
fato de que no meio de toda essa oferta há muita coisa misturada, de baixa
qualidade e as pessoas não têm referência e ignoram como escolher as fontes
confiáveis, o alimento mais saudável para a alma, assim como não sabem muitas
vezes escolher o alimento mais saudável para o corpo. Da mesma forma que temos
fast foods a cada esquina, que intoxicam e provocam câncer de cólo – temos
espiritualidades enganosas, que induzem à alienação e ao anestesiamento do
espírito.
O que há de
preocupante no cenário religioso e espiritual em praticamente todas as nações?
Em primeiro lugar, o fundamentalismo cada vez mais eloquente, retrógrado e
agressivo que se manifesta como um câncer dentro de todas as religiões. Em
todas elas, há pessoas e movimentos abertos e progressistas e há setores que se
apegam à letra, que manifestam um fanatismo perigoso e que se fecham ao diálogo
e à tolerância. Essa é uma ameaça que nunca será demais denunciar – mesmo
porque ela está se fazendo cada vez mais forte no Brasil com os evangélicos
mais radicais – e porque está instalada em vários pontos do mundo.
Mas o outro fenômeno,
talvez não tão claro para muitos, é o esgarçamento, a diluição da
espiritualidade num aluvião de livrinhos, pregações, símbolos que não têm nada
de espiritual, mas apenas de comercial. Ideias, apelos, movimentos inteiros que
são atrativos para os olhos, sedutores para as mentes superficiais da
atualidade, mas sem nenhuma consistência. Isso que eu chamo de espiritualidade
light, que mistura cristais com autoajuda, que faz de padres pop stars que
vendem milhões de CDs, que torna monges budistas instrutores de executivos
bem-sucedidos, que promove médiuns medíocres e espalhafatosos em produtores de
best-sellers… essa espiritualidade é que nas prateleiras das livrarias está
misturada com livros sérios de um Leonardo Boff, com belezas de uma poesia
sufi, com a profundidade de uma obra de Teresa d’Ávila!
Num mundo em que a
moeda mais valiosa é a própria moeda, a lógica da oferta da fé é uma
lógica comercial. E os consumidores, como estão acostumados a consumir lixo
como comida, lixo como arte, também consomem lixo como fé… A maior parte da
população perdeu, ou nunca chegou a ter, por falta de uma educação que
proporcione isso, a sensibilidade e o discernimento para enxergar os falsos
gurus, para distinguir as tradições genuinamente enraizadas dos modismos
comerciais…
Mas assim como a rede,
o mercado, os livros, os vídeos oferecem todo esse alimento espiritual
verdadeiramente rico, misturado a grãos apodrecidos, também nela podemos achar
polêmicas, denúncias, discussões históricas sobre todas as grandes tradições.
Ao mesmo tempo em que podemos nos alimentar espiritualmente de várias origens
ou escolher com mais conhecimento de causa o que mais fala ao nosso coração,
podemos encontrar antídotos bastante relevantes contra mistificações,
charlatanismos, falsidades históricas e assim por diante. Está tudo aí, o
verdadeiro e o falso, o elevado e o abusivo, o sincero e o hipócrita, o que é
fruto de pesquisa séria e o que é enganação deslavada.
Como viver de fato a espiritualidade
Mas como nos
conduzirmos nesse emaranhado de ideias, ofertas e caminhos? É possível não
sermos enganados? Esses enganos podem ser mais inofensivos – como achar que um
livro como Código da Vinci têm respaldo histórico – ou mais
graves, como entrar para alguma seita que nos faça lavagem cerebral e nos
aliene da própria razão!
Aqui, algumas dicas,
que considero essenciais para podermos viver uma espiritualidade construtiva,
autônoma e saudável!
1) Ouçamos os ateus e
os antirreligiosos: eles têm críticas que podem ser úteis para nos imunizarmos
contra os que abusam da religião para explorar o próximo e para ganhar poder e
dinheiro. Um pouco de ceticismo faz bem à nossa espiritualidade.
2) Desconfiemos de
líderes e gurus que aceitam ser reverenciados, que ditam regras de cima, que
vivem muito distanciados das pessoas comuns. As pessoas que realmente vivem
numa dimensão espiritual elevada são simples, despojadas, não permitem que
ninguém se humilhe diante delas…vivem próximas às outras pessoas.
3) Desconfiemos de movimentos,
instituições, líderes que têm muito dinheiro. Em nosso mundo, quem luta por
ideais nobres e se alinha no bem, pode usar o dinheiro de maneira saudável e
construtiva, mas encontra dificuldades sempre, porque no sistema capitalista,
só faz fortuna quem age dentro da lógica do sistema – ora fazer fortuna com a
espiritualidade é trata-la como mercadoria.
4) Acima de tudo,
enraizemos nossa espiritualidade em nós mesmos e não no outro. Para isso, é
preciso ter tempo para vivenciá-la: tempo para orar, tempo para sentir a
natureza, tempo para amar ao próximo e estar junto de quem precisa… ou seja, a
vida contemporânea se opõe a esse vagar, a esse respirar da alma e justamente
por isso, pretende vender espiritualidade em pastilhas, para serem tomadas entre
um programa e outro de televisão! Quem tem experiências espirituais profundas,
verdadeiras e legítimas não vai se iludir com falsos gurus!
A experiência
espiritual pressupõe silêncio – dos ouvidos físicos e da alma. Um silêncio que
permita o aflorar do divino em nós, que nos faça sentir a conexão com todas as
coisas e nos permita saborear a paz. Por isso, a espiritualidade requer uma
mudança de atitude de vida – sem excessos de trabalho, prazeres, informações,
correrias. Uma vida de equilíbrio, em que nos permitamos a pausa para um
respiro da alma, para nos sustentarmos com o alimento do céu, que sacia muito
mais dos que os alimentos perecíveis do comércio da fé.
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