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11 de mar. de 2012

Diálogo com as Sombras 2ª PARTE (4) - O DOUTRINADOR






4 - O DOUTRINADOR

Num grupo mediúnico, chama-se doutrinador a pessoa que se incumbe de dialogar com os companheiros desencarnados necessi­tados de ajuda e esclarecimento. Qualquer bom dicionário leigo dirá que doutrinar é instruir em uma doutrina, ou, simplesmente, ensinar. E aqui já começamos a esbarrar nas dificuldades que a palavra doutrinador nos oferece, no contexto da prática mediúnica.
Em primeiro lugar, porque o espírito que comparece para de­bater conosco os seus problemas e aflições, não está em condições, logo aos primeiros contactos, de receber instruções doutrinárias, ou seja, acerca da Doutrina Espírita, que professamos, e com a qual pretendemos ajudá-lo. Ele não vem disposto a ouvir uma pregação, nem predisposto ao aprendizado, como ouvinte paciente ante um guru evoluído. Muitas vezes ele está perfeitamente fami­liarizado com inúmeros pontos importantes da Doutrina Espírita. Sabe que é um Espírito sobrevivente, conhece suas responsabilidades perante as leis universais, admite, ante evidências que lhe são mais do que óbvias, os mecanismos da reencarnação, reconhece até mesmo a existência de Deus. Quanto à comunicabilidade entre encarnados e desencarnados, ele nem discute, pois está justamente produzindo uma demonstração prática do fenômeno, e seria infan­tilidade de sua parte tentar ignorar a realidade.
Portanto, o companheiro encarnado, com quem estabelece o diá­logo, não tem muito a ensinar-lhe, em termos gerais de doutrina.
      Por outro lado, o chamado doutrinador não é o sumo-sacerdote de um culto ou de uma seita, que se coloque na posição de mestre, a ditar normas de ação e a pregar, presunçosamente, um estágio ideal de moral, que nem ele próprio conseguiu alcançar. A des­peito disso, ele precisa estar preparado para exercer, no momento oportuno, a autoridade necessária, que toda pessoa incumbida de uma tarefa, por mais modesta, deve ter. Não se esquecer, porém, de que, no grupo mediúnico, ele é apenas um dos componentes, um trabalhador, e não mestre, sumo-sacerdote ou rei.
      Sua formação doutrinaria é de extrema importânçia. Não po­derá jamais fazer um bom trabalho, sem conhecimento íntimo dos postulados da Doutrina Espírita. Entre os espíritos que lhe são trazidos para entendimento, há argumentadores prodigiosamente inteligentes, bem preparados e experimentados em diferentes téc­nicas de debate, dotados de excelente dialética. Isto não significa que todo doutrinador tem de ser um gênio, de enorme capacidade intelectual e de impecável formação filosófica. A conversa com os espíritos desajustados não deve ser um frio debate acadêmico. Se o dirigente encarnado dos trabalhos está bem familiarizado com as obras fundamentais do Espiritismo, ele encontrará sempre o que dizer ao manifestante, ainda que não esteja no mesmo nível intelectual dele. O confronto aqui não é de inteligências, nem de culturas; é de corações, de sentimentos. O conhecimento doutri­nário torna-se importante como base de sustentação. O doutrinador precisa estar convencido de que a Doutrina Espírita dispõe de todos os informes de que ele necessita para cuidar dos manifestantes em desequilíbrio, mas isso não é tudo, porque ele pode ser um bom conhecedor dos princípios teóricos do Espiritismo e ser completamente desinteressado do aspecto evangélico; ou, ainda, conhe­cer a doutrina e recitar prontamente qualquer versículo evangé­lico, mas não apoiar o seu conhecimento na emoção e no legítimo desejo de servir e ajudar. Voltaremos ao assunto quando tratar­mos do problema específico da doutrinação. Os espíritos em estado de perturbação, que nos são trazidos às sessões mediúnicas, não estão, logo de início, em condições psicológicas adequadas à pre­gação doutrinária, como já dissemos. Necessitam aflitivamente de primeiros socorros, de quem os ouça com paciência e tolerância. A doutrinação virá no momento oportuno, e, antes que o doutri­nador possa dedicar-se a este aspecto específico, ele deve estar 
preparado para discutir o problema pessoal do espírito, a fim de obter dele a informação de que necessita. É nesse momento que ele precisa utilizar-se de seus conhecimentos gerais, intercalando aqui e ali um pensamento evangélico que se adapte às condições desenvolvidas no diálogo.
Isto nos leva a outro aspecto importante: o “status” moral do doutrinador. Sua autoridade moral é importante, por certo, mas qual de nós, encarnados, ainda em lutas homéricas contra imperfei­ções milenares, pode arrogar-se uma atitude de superioridade moral sobre os companheiros mais desarvorados das sombras? Ainda temos mazelas e ainda erramos gravemente. O espírito que debate co­nosco sabe de nossas inúmeras fraquezas, tanto quanto nós, e até mais do que nós, às vezes, por serem, freqüentemente, companhei­ros de antigas encarnações, em que fomos, talvez, comparsas de desacertos hediondos. Ele nos vigia, observa-nos, analisa-nos e estuda-nos, de uma posição vantajosa para ele: na invisibilidade. Tem condições de aferir nossa personalidade e nossos propósitos, pela maneira como agimos em nosso relacionamento com os semelhan­tes. Percebe mais as nossas intenções, a intensidade e a since­ridade do nosso sentimento, do que o mero som das palavras que pronunciamos. Se estivermos recitando lindos textos evangélicos, sem sustentação na afeição legítima, ele o saberá também.
Muitas vezes, refere-se desabridamente a uma ou outra fra­queza íntima nossa, como, por exemplo:
— Você não tem força para deixar o vício de fumar, como quer me obrigar a deixar de perseguir aquele que me prejudicou?
Ou então, nos lembra uma situação irregular em que nos encon­tramos, ou um erro mais grave cometido no passado recente, ou crimes que praticamos em vidas pregressas. Tudo serve. É preciso que o doutrinador esteja preparado para estas situações. Não adi­anta exibir virtudes que não possui ainda. Deve lembrar-se, porém, de que somos julgados e avaliados, não pelos resultados que obte­mos, mas pelo esforço que realizamos para alcançá-los. Não é pre­ciso ser santo, para doutrinar. Aqueles que já se purificaram a esse ponto, dedicam-se a tarefas mais complexas, de maior responsa­bilidade, compatíveis com o adiantamento espiritual que já alcançaram.
Por outro lado, não podemos esperar a perfeição para ajudar o irmão que sofre. É exatamente porque ainda somos tão imper feitos quanto ele, que estamos em condições de servi-lo mais de perto. Muitos são desafetos antigos, que ainda não nos perdoaram. É aqui que vemos a validade da palavra sábia do Cristo:
— Reconcilia-te com o teu adversário, enquanto estás a ca­minho com ele.
Não podemos impor ao companheiro infeliz uma superioridade moral inexistente. O doutrinador é também um ser falível e cons­ciente das suas imperfeições, mas isto não pode e não deve inibi-lo para a tarefa. É preciso levar em conta, ainda, que muitos com­panheiros espirituais desarvorados, que nos conheceram em passado tenebroso, vêem em nós mais aqueles que fomos do que o que somos hoje, ou pretendemos ser. Se tivermos paciência e tolerância, o manifestante acabará por admitir que, mesmo que ainda não tenhamos alcançado os estágios superiores da evolução, nossa boa intenção é legítima, o esforço que desenvolvemos é digno, e nos respeitarão por isso.
O  doutrinador precisa, ainda, ser uma criatura de fé viva, po­sitiva, inabalável. Ele não pode dar aquilo que não tem. Se me perguntassem qual o elemento mais importante na estrutura da personalidade do doutrinador, eu não saberia dizer, mas ficaria indeciso entre a fé e o amor, sobre o qual ainda falaremos adiante. Que tipo de fé? A fé espírita, tal como a conceituou Kardec:
sincera, convicta, lógica, plenamente suportada pela razão, mas sem se deixar contaminar pela frieza hierática do racionalismo estéril e vazio.
Façamos uma pausa na exposição, para um exame da fé, que tanto nos interessa, neste, como em tantos outros contextos.

*

Quero falar aqui daquela fé sobre a qual Paulo escreveu seu belissimo poema, no capitulo 11 da Epístola aos Hebreus:
— A fé — disse ele — é a garantia do que se espera; a prova das realidades invisíveis. Pela fé, sabemos que o universo foi criado pela palavra de Deus, de maneira que o que se vê resultasse da­quilo que não se vê. (1)

(1) O texto citado é da Bíblia de Jerusalém.

Em Paulo, a fé era o suporte das realidades que o conheci­mento ainda não atingira; em Kardec é a certeza daquilo que o conhecimento, afinal alcançado, confirmou no coração do homem.
Para o Cristo, a fé do tamanho de uma semente de mostarda bastaria para remover montanhas. Para Ele, é a fé que cura o servo doente do romano pagão e estanca a hemorragia da mulher que O tocou. É a ausência de fé que Ele censura docemente nos discípulos que temeram a tempestade e a morte.
É ainda a falta de fé que Ele repreende nos discípulos, ao expul­sar o Espírito que atormentava o jovem lunático (Mateus, 17:14-20):
— Os discípulos vieram, então, ter com Jesus, em particular, e lhe perguntaram: “Por que não pudemos, nós outros, expulsar esse demônio?” Respondeulhes Jesus: “Por causa da vossa incredulidade. Pois em verdade vos digo, se tivésseis fé do tamanho de um grão de mostarda, diríeis a esta montanha: Transporta-te daí para ali, e ela se transportaria e nada vos seria impossível.”
O episódio é de grande força e beleza. Os discípulos já haviam tentado, sem êxito, doutrinar o possessor que fazia o que queria com o infeliz jovem. Batidos pelo fracasso, e ante a facilidade com que o Cristo resolve o problema, pedem explicações. Resposta:
fé. Sem ela, pouco ou nada podemos; com ela, “nada é impossível”. É uma afirmativa de extraordinário vigor, feita por quem Possuía autoridade mais do que suficiente para fazê-la. Coloquemo-la de forma positiva: tudo é possível àquele que crê.
Marcos narra o episódio no capítulo 9 (versículos 14 a 29).
Jesus cura o infeliz possesso que, segundo o pai, era possuído por um Espírito mudo, que se apoderava dele em qualquer lugar, der­rubava-o ao solo, fazia-o espumar, ranger os dentes, e o deixava rígido, provavelmente desacordado. Os discípulos nada puderam fazer, e, depois de curá-lo, o Cristo insiste em que tudo é possível àquele que crê, e ainda mais: que aquela classe de espíritos não poderia ser tratada senão com a prece.
      Ao comentar a passagem, em “O Evangelho segundo o Espi­ritismo”, Kardec escreve que “a confiança nas suas próprias forças torna o homem capaz de executar coisas materiais, que não con­segue fazer quem duvida de si”. No contexto, porém, as palavras devem ser entendidas em seu sentido moral. Não se trata, é certo, de remover montanhas de terra e pedra, imagem usada pelo
Cristo para fixar o seu pensamento na memória dos ouvintes. “Da fé vacilante — diz Kardec, pouco depois — resultam a incerteza e a hesi­tação, de que se aproveitam os adversários que se tem de combater; essa fé não procura os meios de vencer, porque não acredita que possa vencer.” (Destaque meu.)
O comentário de Kardec é de transcendental importância. Para não transcrevê-lo por inteiro, aqui, é preferível recomendar que o leitor não deixe de estudá-lo e de meditar pausadamente acerca de todas as suas implicações, pois ele ocupa todo o capítulo 19 de “O Evangelho segundo o Espiritismo”, páginas 284 a 293, da 57ª edição da FEB.
É também aí que o Codificador escreveu sua famosa sentença:
— Fé inabalável só é a que pode encarar de frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.
Dificilmente se poderia dizer melhor, com tão poucas palavras. A conceituação de fé tornou-se, com Kardec, definitiva. Precisa ser inabalável, tem que “encarar a razão” destemidamente, confiante-mente, sempre, em todas as épocas. Somente assim será inabalável. Fora disso, pode ser crença, suspeita, opinião, parecer, conjetura, presunção, mas não será fé.
Sem ela, o doutrinador estará desarmado, despreparado para a sua tarefa, por mais bem-dotado que seja, com relação aos de­mais atributos necessários à sua função.
Ele precisa estar confiante nos poderes espirituais que susten­tam o seu trabalho, sem os quais nenhuma tarefa de desobsessão é possível, e todos os riscos são iminentes e inevitáveis. Ele tem de saber que, ao levantar-se para dar um passe, a fé lhe trará os recursos de que necessita para servir. Ele deve saber que, ao formular sua prece, vai encontrar a resposta ao que implora, em benefício do companheiro que sofre.
Além disso, é a fé que lhe dá o apoio da confiança de que ele precisa para aventurar-se pelas ásperas e tenebrosas regiões do mais terrível sofrimento, do mais angustioso desespero, da mais violenta revolta. Se não tem fé, não estará em condições de rea­lizar o trabalho a que se propõe.
Outro ingrediente necessário, na psicologia do doutrinador, é o amor. Não é por acaso que nos textos evangélicos caridade e amor são tratados como sinônimos. Impossível seria considerar a cari­dade sem o amor, tanto quanto o amor descaridoso. Por isso, tra­duções modernas do Evangelho substituiram por amor a expressão caridade, que aparecia nos textos mais antigos, do belíssimo capí­tulo 13, da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios:
— Ainda que eu fale a linguagem dos homens e dos anjos, se não tenho amor, sou como o bronze que soa e o címbalo que retine... Se não tenho amor, nada me aproveita... O amor épaciente e serviçal... O amor não é invejoso, nem presunçoso, não é temerário, nem precipitado, não tem orgulho, não é interes­seiro, não se irrita, não se alegra com a injustiça e sim com a verdade. O amor tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor não se acaba nunca. Se tudo se acabasse, restariam a fé, a espe­rança e o amor.
A Bíblia de Jerusalém lembra, em nota de rodapé, que a ex­pressão do original grego agapô, caracteriza bem a gradação cuida­dosa do sentimento que Paulo desejou transmitir aos seus amigos de Corinto. Agapô é o amor-benevolência, que se dirige, como força construtiva do bem, em favor do próximo, diferente, portanto, do amor passional e egoísta.
É desse amor-doação que precisa o doutrinador. Do amor que, segundo o Cristo, devemos sentir, com relação aos nossos próprios inimigos. É isto bem verdadeiro, no caso da doutrinação de Espí­ritos conturbados, porque, ao se apresentarem diante de nós, vêm com a força e a agressividade de inimigos implacáveis. Se respon­dermos à sua agressividade com a nossa, o trabalho se perde e desencadeamos contra nós a reação sustentada da cólera, do rancor, do ódio. Sem nenhuma figura de retórica, é preciso ter, no tra­balho de desobsessão, a capacidade de amar os inimigos.
      - “É preciso — escrevia eu em “Reformador” de fevereiro de 1975 — ter muito amor a dar, para distribuí-lo assim, indiscri­minadamente, a qualquer companheiro espiritual que se manifeste. Muitas vezes, o médium doutrinador não se encontra, na sua vida de encarnado, cercado pelo sentimento de afeição de familiares e companheiros. Tem seus parentes, vive rodeado de conhecidos, no ambiente de trabalho, mas não conta com grandes afeições e dedi­cações. A sustentação do seu teor vibratório, no campo do amor, deverá vir de Cima, e, para isso, precisa estar ligado aos Planos Superiores, que o ajudam e assistem a distância. Sem amor pro­fundo, pronto na doação, incondicional, legítimo, sincero, é impra­ticável o trabalho mediúnico realmente produtivo e libertador.
      É claro que estas observações são válidas para todos os com­ponentes do grupo, mas particularmente se dirigem ao doutrinador, porque é ele o seu porta-voz, é nele que os Espíritos desequilibrados identificam a petulante intenção de interferir com seus planos pessoais, é ele, usualmente, o responsável pela direção dos as­pectos, por assim dizer, terrenos, do trabalho. É lógico e natural, portanto, para os irmãos desorientados, que se concéntre no dou­trinador grande parte do esforço de envolvimento, bem como suas cóleras e suas ameaças. O médium doutrinador tem que devolver todo esse concentrado ataque vibratório, transformado em com­preensão, tolerância e, principalmente, amor fraterno.

*

Isto não esgota, ainda, o rol das aptidões que devem integrar a personalidade do doutrinador. Nem pretendemos esgotá-lo aqui, ou afirmar que somente pode investir-se na função de doutrinador aquele que possuir cumulativamente todas essas virtudes. Não estamos ainda nesse estado evolutivo.
Prossigamos, no entanto, ainda no exame dos componentes morais e psicológicos da personalidade de um bom doutrinador.
Se não dispuser de um mínimo de aptidões, o candidato a tal função deve procurar desenvolvê-las, ou assumir outra tarefa, para a qual, seus recursos pessoais sejam mais adequados. Uma dessas virtudes é a paciência. Não pode ele, sem prejuízo sério para o seu trabalho, atirar-se sofregamente ao interrogatório do Espírito manifestante. Tem que ouvir, aturar desaforos e impropérios, agres­sões verbais e impertinências. Tem que aguardar o momento de falar. Para isso, necessita de outra qualidade pessoal, não parti­cularmente rara, mas que precisa ser cultivada, quando não des­pertada: a sensibilidade, que o levará a sentir pacientemente o ter­reno estranho, difícil e desconhecido em que pisa, as reações do Espírito, procurando localizar os pontos em que o manifestante, por sua vez, seja mais sensível e acessível. Isto se faz com uma qualidade pessoal chamada tato, segundo a qual, vamos, pela obser­vação cuidadosa, serena, nos informando de determinada situação ou acontecimento, até que estejamos seguros de poder tomar uma posição ou uma decisão sobre o assunto.
A paciência, a sensibilidade e o tato nos facultam as informa­ções que buscamos, mas não disparam, por si mesmos, os meca­nismos da ação, ou seja, não nos indicam a providência a tomar, nem nos sustentam no que fizermos. Para isso, se pede outra dis­posição que poderíamos chamar de energia, que deve ser controlada e oportuna. Há de chegar-se a um ponto, na doutrinação, em que se torna imperiosa a tomada de uma atitude firme, enérgica, que não pode ser contundente, nem agressiva. É a hora da energia, e o momento tem que ser o certo. Nem antes, nem depois da opor­tunidade. Veremos isto, quando cuidarmos do trabalho propria­mente dito.
Há mais ainda.
O doutrinador deve estar em permanente estado de vigilância, na mais ampla acepção do termo. Vigilância quanto aos seus pro­prios sentimentos e pensamentos, quanto às suas suposições e in­tuições, quanto ao que se contém nas entrelinhas do que diz o manifestante, quanto ao que ocorre à sua volta, com os demais componentes do grupo, quanto à sua própria conduta, não apenas durante o trabalho mediúnico, propriamente dito, mas no seu pro­ceder diário. Convém repetir: não precisa ser um santo, e não o será mesmo. Vigilância e boa intenção não são santidade. O dou­trinador precisa servir em estado de alertamento constante.
Uma questão cabe introduzir aqui: convém que ele disponha de alguma forma de mediunidade ostensiva? Em Espiritismo, não há posições dogmáticas. Minha opinião pessoal é a de que algumás formas de mediunidade são desejáveis. Colocaria em primeiro lugar a intuitiva, através da qual o doutrinador possa receber as inspira­ções de seus amigos espirituais, responsáveis pelo trabalho, e desen­volvê-las junto ao manifestante, com seus próprios recursos e suas próprias palavras.
Em segundo lugar, poria a vidência, que certamente auxiliará na visão de cenas e quadros, ou da aparência pessoal do Espírito manifestante e de seus eventuais companheiros. Será também útil dispor da faculdade de clariaudiência, e, neste caso, ouviria dire­tamente as instruções e “recados” do mundo espiritual, que fossem de interesse para o seu trabalho. Isto, porém, não o coloca inteiramente a salvo de alguma palavra, soprada desavisadamente, que o leve a falsos caminhos.
Creio poder afirmar que não seria desejável qualquer forma de mediunidade que colocasse o dirigente, ou doutrinador, em es­tado de inconsciência. Ele precisa manter-se lúcido durante todo o período de trabalho.
Uma confreira, experimentada nas lides espíritas, contou-me que certa vez se encontrou ante a contingência de dirigir uma sessão de desobsessão. Relutantemente, concordou em assumir o encargo, pois temia que sua ostensiva mediunidade de incorporação interferisse com a boa marcha do trabalho. Realmente, foi o que aconteceu. Ao iniciar a tarefa do diálogo com um Espírito manifestante, começou a sentir-se envolvida, perdeu o fio da conver­sação e, sentindo-se girar “como um parafuso” — disse ela —, daí a pouco estava, por sua vez, também incorporada, criando certo pânico na sessão. Depois dessa experiência, ela passou a recusar, com firmeza, qualquer solicitação para funcionar como doutrina­dora, dedicando-se a outras atividades, tão nobres quanto essa, para as quais estava perfeitamente preparada, com a abençoada mediunidade de cura. Suponho que, por isso, a faculdade mais comumente encontrada num doutrinador é, precisamente, a intuição. Se ele procura sintonizar-se com o mundo espiritual, esta via de comunicação bastará ao seu trabalho. Por ela, seus companheiros mais esclarecidos se comunicarão, com eficiência e oportunidade, para a ajuda de que ele não pode prescindir. De uma vez por todas, tiremos de nossa cabeça a noção falaz de que o bom doutrinador pode dispensar a colaboração dos Espíritos Superiores. Mais de uma vaidade tem sido explodida por causa disso, e não poucas obsessões pertinazes têm resultado dessa ingênua e perigosa imaturidade. Já fazemos muito quando não atrapalhamos os dedicados companheiros da Espiritualidade Maior. Se manifestamos a tola pretensão de dis­pensar-lhes a ajuda, eles se afastarão, com tristeza, é certo, mas com serenidade e sem remorsos, de vez que jamais impõem a sua presença, nem a sua vontade. Não há bom doutrinador sem a cola­boração e o apoio dos Espíritos mais esclarecidos. E, em breve, não haverá nem bom nem mau, porque o pretensioso ficará literal­mente aniquilado pela obsessão ou pela fascinação de Espíritos ardi­losos, que se apresentam com nomes pomposos e se arvoram, por sua vez, em doutrinadores do doutrinador, pregando estranhas e confusas idéias.
Com isto, chegamos a outra faculdade necessária ao doutrinador:
a humildade. Ele vai precisar dela, com freqüência impressionante. A princípio, para aceitar as ironias, agressões e impertinências dos pobres irmãos atormentados. Depois, se e quando conseguir con­vencer, o companheiro, de seus enganos e de seus erros, para não assumir a atitude do vencedor que pisa na garganta do vencido, para mostrar o seu poder e confirmar a sua vaidade e seu orgulho. É a partir do momento em que o turbulento manifestante de há pouco se converte em verdadeiro trapo humano, arrependido e em pranto, que o doutrinador deve mostrar toda a sua compaixão hu­milde e o seu respeito pela dor alheia.
Tem, ainda, que ser humilde no aprendizado. Cada manifesta­ção traz a sua lição, a sua informação, a sua surpresa. Em tra­balho mediúnico, estamos sempre aprendendo e nunca sabemos o suficiente. Se não nos aproximarmos dele com humildade, pouco ou nenhum progresso conseguiremos realizar.
A humildade é necessária, também, quando não conseguimos convencer o companheiro infeliz. Precisamos estar preparados para a derrota, em muitos casos. Nada de pretensões tolas de que o trabalho foi cem por cento positivo. Claro que positivo, em sen­tido genérico, ele sempre o é. Mesmo naquele que não conseguimos demover de seus propósitos, se tivermos tido habilidade e tato, teremos realizado, no seu coração, a sementeira da verdade. Um dia — não importa quando — ele vai lembrar-se do que lhe dis­semos e conferi-lo com a realidade. Não contemos, porém, com o êxito total da conversão imediata e definitiva, ao amor, de todos os Espíritos que nos são trazidos. Muitos daqueles dramas, que se desenrolam diante de nós, arrastam-se há séculos. Não se ajustam em minutos de conversa. Humildade, pois, para aceitar esses casos e continuar lutando. Não somos super-homens, nem semideuses.
Humildade, ainda, quando precisarmos reconhecer o potencial intelectual do irmão espiritual com o qual nos defrontamos. E isso é muito freqüente. Não quer dizer que nos devamos curvar servilmente diante dele, rendendo homenagens à sua inteligência e ao seu conhecimento; quer dizer que precisamos admitir, às vezes, que não estamos em condições de superá-lo naquilo que constitui o seu ponto forte. Nem é essa a técnica recomendada. Suponhamos que compareça, para conversar conosco, um Espírito de elevada cultura, que lecionou em Faculdades, ocupou assentos em Academias, recebeu, enfim, as honrarias que tantos buscam, em vez da paz interior. Não é no terreno dele que nos vamos medir, não é discutindo Filosofia, com ele, que vamos convencê-lo de seus enganos. Nesse campo, ele dispõe de mais recursos do que nós. E foi jus­tamente o debate inútil e o vão filosofar que arruinaram sua vida espiritual. Ele precisa de atenção, fraternidade, respeito e since­ridade, não de debates estéreis, nos quais facilmente nos vencerá, para consolidar a sua vaidade lamentável. Um pouco de humildade, da nossa parte, o levará a respeitar-nos também, enquanto a exibi­ção inútil de precários conhecimentos filosóficos, e de medíocre cultura intelectual, só poderá estimular nele o desprezo por nós e pela nossa posição. Nada, pois, de aparentar o que ainda não somos. E, mesmo que o fôssemos, a humildade, ainda assim, seria indicada.
Lembremos ainda uma qualidade: o destemor. Já disse alhures que, em trabalho mediúnico, temos que ser destemidos, sem ser temerários. Coragem não é o mesmo que imprudência.
O  destemor é de extrema utilidade nas tarefas de doutrinação. Fustigados pela interferência dos grupos mediúnicos em seus tene­brosos afazeres, os Espíritos violentos comparecerão possuídos de irritação, rancor e ódio, mesmo. Manifestam-se aos berros, dão murros na mesa, ameaçam céus e terras, procuram intimidar e propõem-se a vigiar-nos implacavelmente, a atacar nossos pontos fracos ou fazer um cerco impiedoso em torflo de nossa família, provocar acidentes, doenças, perturbações. O arsenal de ameaças é vasto, e eles manipulam, com extrema sagacidade, as armas da pressão. Se nos deixarmos impressionar pelas verdadeiras cenas que fazem, estaremos realmente perdidos, porque nos colocaremos na faixa vibratória desejada por eles, Os benfeitores espirituais sempre nos advertem, de maneira tranqüila e segura:
— Nada de temores infundados. Sofremos apenas aquilo que está nos nossos compromissos espirituais, e não em decorrência do trabalho de desobsessão.
É verdadeiro, isso. Seria injusto, por parte das leis supremas, que, evidentemente, governam o Universo, se a paga da dedicação ao irmão que sofre resultasse em sofrimento indevido e em punição imerecida. Estariam subvertidos todos os princípios da Jus­tiça Divina, se assim fosse. É até
possível que uma ou outra, das ameaças esbravejadas contra nós, se cumpra, ou seja, aconteça aci­dentalmente, como doença inesperada cm um de nós, ou em membro da nossa família. Estejamos certos de que, na sessão seguinte, virá de novo o irmão infeliz, para se vangloriar:
— Eu não disse?
Não tema, siga em frente. O trabalho está sob a proteção de forças positivas e abençoadas. Isto, porém, não significa que deve­remos e poderemos deixar cair as guardas. A proteção existe, mas não para dar cobertura à imprudência, à irresponsabilidade.
Não custa, pois, anotar mais uma das aptidões necessárias ao bom desempenho do trabalho mediúnico, em geral, e do doutri­nador, em particular: a prudência.
Se, porém, um acontecimento desagradável realmente acontecer conosco, ou com alguém da nossa convivência, nitidamente ligado ao trabalho mediúnico, nem assim devemos nos desesperar e inti­midar: estejamos certos de que estava já nos nossos compromis­sos, e mais: os recursos socorristas virão, sem dúvida alguma.

*

A longa digressão acerca das aptidões desejáveis a um doutrinador não deve necessariamente desencorajar aquele que pretende se preparar para a tarefa. Ele precisa saber que o trabalho é árduo, os riscos são muitos, as qualificações são, idealmente, rigorosas e numerosas, e nenhuma projeção especial o espera. Ao contrário) quanto mais apagado o seu trabalho, mais eficaz e produtivo. Dificilmente um doutrinador reunirá tantos e tão grandes atributos pes­soais. Procuramos, aqui, traçar um perfil ideal e, como todo ideal, difícil, senão impossível de ser atingido. Que isso não desencoraje ninguém à responsabilidade do trabalho. Os Espíritos amigos sabe­rão dosar as tarefas, segundo as forças e as possibilidades de cada grupo.
Por outro lado, o doutrinador é, usualmente, o pára-raios pre­dileto do grupo, porque os Espíritos atribulados, trazidos ao diálogo, com ele se entendem e se desentendem. É nele que identificam a origem de seus problemas. É ele, usualmente, o organizador ou responsável pelo grupo, bem como o seu porta-voz junto ao mundo espiritual. Ainda voltaremos a este tema fascinante, lançando mão de um acervo de experiências pessoais preciosas.
Em suma, o doutrinador não pode deixar de dispor de cinco qualidades, ou aptidões básicas:
Formação doutrinária muito sólida, com apoio insubstituível nos livros da Codificação Kardequiana.
Familiaridade com o Evangelho de Jesus.
      Autoridade moral.
      Fé.
      Amor.
As demais são desejáveis, criticas:
importantes também, mas não tão
Paciência.
Sensibilidade.
Tato.
Energia.
Vigilância.
Humildade.
Destemor.
Prudência.
Com respeito ao doutrinador, falta ainda abordar um aspecto final, antes de prosseguir.
Como é também o dirigente humano do grupo, precisa, como já dissemos, estar consciente dessa responsabilidade e usar sua auto­ridade com muito tato, sem abandonar a firmeza. Disciplina não é sinônimo de ditadura. Quando o grupo reunir-se, para debater problemas ligados ao trabalho, deve o dirigente comportar-se como simples participante, para estimular a criatividade e a contribuição dos demais membros. No momento de tomar a decisão, cabe a ele suportar os ônus e as responsabilidades decorrentes. Precisa tratar a todos, médiuns ou não, com o mesmo carinho e compreensão, sem paternalismos e preferências, mas sem má-vontade contra qualquer um dos membros da equipe. Precisa despertar, nos seus compa­nheiros, a afeição, a camaradagem e o respeito. Poderá ser o pri­meiro entre eles; certamente deverá ser o único a falar com os Espíritos; mas não e o maior”.
A essa altura, dirá o leitor, algo inquieto:
—  Mas é muito difícil ser doutrinador...
É   verdade. É, sim.

LIVRO DIALOGO COM AS SOMBRAS - HERMÍNIO C. MIRANDA

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