AS VERDADEIRAS MÃES DE CHICO XAVIER
As mães de Chico Xavier
Elas perderam seus filhos de forma trágica, buscaram consolo nas cartas psicografadas pelo médium mineiro e mudaram o curso de suas vidas depois desse encontro
Rodrigo Cardoso e João LoesCerta vez, o carioca Chico Buarque de Holanda debruçou-se sobre um papel e rabiscou “Pedaço de Mim” (1978). Dizia a letra da canção: “Ó metade de mim / Ó metade arrancada de mim / Leva o seu olhar / Que a saudade é o pior tormento / Que a saudade é o revés de um parto / A saudade é arrumar o quarto / Do filho que já morreu.” Só mesmo um poeta para verbalizar de maneira precisa o que uma mãe sente quando enterra um filho. Um outro Chico, de sobrenome Xavier – nascido Francisco Cândido Xavier (1910 – 2002), em Pedro Leopoldo, Minas Gerais –, passou a vida confortando mães, pais, avós, enfim, pessoas que perderam entes queridos. E o fazia afirmando, também por meio de rabiscos a lápis em folhas em branco, a continuidade da vida além do corpo em um outro plano, o espiritual. Com o seu trabalho psicográfico, o médium Chico Xavier patrocinou mudanças na vida de milhares de brasileiros. Além de consolar, despertava as pessoas para a dor alheia e as ensinava a trocar o luto desesperador pelo cuidado com aqueles que, ao redor, sofriam tanto quanto ou mais do que elas.
“O Chico me tirou de um pesadelo" |
“Querido papai Wilson e querida mamãe Chiquinha”, riscou Chico Xavier em letras grandes e arredondadas. Era sexta-feira, 18 de outubro de 1980. A carta, mais uma das psicografias feitas pelo médium naquele dia, seria lida mais tarde pelo próprio Chico para êxtase de Francisca Ruiz Dellalio e Wilson Dellalio, pais de Eduardo Ruiz Dellalio, morto quatro meses antes, aos 18 anos, em um acidente de moto a quatro quadras de sua casa, no bairro do Tatuapé, em São Paulo. Era o primeiro texto que recebiam. “Estava pensando em férias sem qualquer sombra nas ideias, quando o choque me surpreendeu”, continuou a carta, que coincidia com o que os pais vinham conversando com o filho na época do acidente.
Eduardo era mais do que o único filho de dona Chiquinha e seu Wilson. Das dez gestações de Francisca, cinco resultaram em aborto, duas em crianças natimortas, uma em um menino que morreu com uma semana de vida e a outra em uma menina, Kátia, que faleceu com pouco mais de um ano. “Até receber a primeira mensagem do Eduardo, simplesmente não vivia”, lembra Chiquinha, que costumava acordar de madrugada e correr, aos prantos, para cheirar as roupas do filho no armário. “O Chico me tirou de um pesadelo”, atesta. “Ele foi a minha salvação.” Do homem que lhe deu conforto com 22 mensagens e quase 300 páginas de texto psicografado, Chiquinha, hoje com 69 anos, guarda lembranças dignas de uma devota que conheceu seu Deus. “Perto dele você não sentia o chão. Me segurava em cada palavra que ele dizia.” Uma carta em especial tocou fundo Francisca. Na mensagem de número sete, o filho repetiu uma expressão comum apenas entre eles. “Esticar minhas andanças” era o que Eduardo dizia quando queria um complemento da semanada dada pelo pai para que pudesse passear mais com os amigos nos finais de semana. “Nem o pai sabia disso, só eu e ele”, diz, emocionada. “Ainda sinto o cheiro do perfume dele pela casa”, lembra.
As cartas que Chico psicografou a familiares durante sua trajetória mediúnica, iniciada em 1927, aos 17 anos, são um dos legados mais marcantes do maior líder espírita da história do Brasil. Por meio delas, pessoas já falecidas teriam estabelecido contato com aquelas que, aqui, morriam de saudade. Em 2 de abril se encerram as comemorações do centenário de nascimento do médium mineiro. Um dia antes, entra em cartaz “As Mães de Chico Xavier”, dos diretores Glauber Filho e Halder Gomes, que retrata o sofrimento de duas mães que perderam seus filhos e de uma que, ainda grávida, tem o pai de sua filha morto em um assalto. Mais do que esses relatos inspirados em histórias reais e no livro “Por Trás do Véu de Ísis” (Ed. Planeta), de Marcel Souto Maior, o filme é feliz ao retratar como as mulheres passam a reagir melhor às perdas e, desse modo, a levar uma vida mais normal, depois que recebem, por meio do médium, mensagens vindas do plano espiritual (leia texto sobre o filme na pág. 75).
É ponto pacífico entre leigos e especialistas: o luto de uma mãe que perdeu o filho é o mais difícil de ser enfrentado. “É o vínculo mais forte que existe”, afirma Vera Lúcia Dias, mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), terapeuta das perdas e do luto, além de autora da tese de mestrado “Mensagens Psicografadas e Luto” (PUC-SP, 2002) e do livro “Quando a Morte nos Visita – Uma Leitura Psicológica dos Processos de Luto e da Busca por Mensagens Psicografadas”, a ser lançado em junho de 2011. Mineira de Uberaba, a psicóloga assistiu durante anos ao fenômeno das mães que buscavam as cartas de Chico Xavier em sua cidade. “As senhoras que ouvi para minha tese diziam que vinham buscar notícias dos filhos”, conta. Em sua pesquisa qualitativa, todas elas foram unânimes em dizer que receber as mensagens trouxe conforto e alívio. “Uma mãe que perde um filho se faz muitas perguntas – onde ele está, se está bem, etc. E as psicografias dão um certo conforto nesse sentido”, afirma.
Essa atividade consoladora de Chico passou a ser reconhecida nacionalmente quando o médium vivia em Uberaba, para onde se mudou em 1959, aos 49 anos. Foi em 1972, depois de participar do programa de televisão “Pinga Fogo”, que ele assistiu a uma caravana de brasileiros baterem à sua porta à procura da certeza de que pessoas queridas seguiam vivendo após a morte. Psicografar cartas, porém, era uma prática que o acompanhava desde os anos 30, ainda em Pedro Leopoldo. Com 17 anos, o mineiro psicografaria a primeira mensagem, assinada por um espírito amigo. Nesse mesmo dia, receberia uma carta assinada pela própria mãe, Maria de São João de Deus, que havia morrido quando ele tinha 5 anos. Segundo a médica Marlene Nobre, presidente da Associação Médico-Espírita do Brasil (AME-BR), a psicografia de Chico era inconsciente. É como se ele se doasse por inteiro para que o espírito comunicante falasse por si com total individualidade. Coautora com Paulo Rossi Severino e a equipe da AME-SP de “A Vida Triunfa”, que analisa a natureza da mediunidade do mineiro, Marlene explica que Emmanuel, o guia espiritual de Chico, funcionava com uma espécie de filtro e selecionava os espíritos que estivessem preparados para passar uma mensagem positiva. “Ele escolhia aqueles prontos para fazer recomendações, como a de ajudar os mais carentes”, diz. “O espírito do filho trabalharia junto aos pais nessa missão caritativa. Ajudar, portanto, era uma forma também de os pais se aproximarem do filho que partiu.” De fato, no conteúdo das mensagens sempre havia o chamado para que se cuidasse da dor do próximo.
Essa atividade consoladora de Chico passou a ser reconhecida nacionalmente quando o médium vivia em Uberaba, para onde se mudou em 1959, aos 49 anos. Foi em 1972, depois de participar do programa de televisão “Pinga Fogo”, que ele assistiu a uma caravana de brasileiros baterem à sua porta à procura da certeza de que pessoas queridas seguiam vivendo após a morte. Psicografar cartas, porém, era uma prática que o acompanhava desde os anos 30, ainda em Pedro Leopoldo. Com 17 anos, o mineiro psicografaria a primeira mensagem, assinada por um espírito amigo. Nesse mesmo dia, receberia uma carta assinada pela própria mãe, Maria de São João de Deus, que havia morrido quando ele tinha 5 anos. Segundo a médica Marlene Nobre, presidente da Associação Médico-Espírita do Brasil (AME-BR), a psicografia de Chico era inconsciente. É como se ele se doasse por inteiro para que o espírito comunicante falasse por si com total individualidade. Coautora com Paulo Rossi Severino e a equipe da AME-SP de “A Vida Triunfa”, que analisa a natureza da mediunidade do mineiro, Marlene explica que Emmanuel, o guia espiritual de Chico, funcionava com uma espécie de filtro e selecionava os espíritos que estivessem preparados para passar uma mensagem positiva. “Ele escolhia aqueles prontos para fazer recomendações, como a de ajudar os mais carentes”, diz. “O espírito do filho trabalharia junto aos pais nessa missão caritativa. Ajudar, portanto, era uma forma também de os pais se aproximarem do filho que partiu.” De fato, no conteúdo das mensagens sempre havia o chamado para que se cuidasse da dor do próximo.
“O Chico é tudo na minha vida" |
Meses depois do acidente, o pai do garoto, que abandonara o trabalho, ia três vezes por dia ao cemitério, enquanto Lucy tentava se recuperar do irrecuperável na casa da mãe. “Fui criada no seio católico: morreu, purgatório, céu, inferno, essas coisas”, enumera. “Não tinha alento.” No auge de seu desespero, uma amiga a convenceu a ir até Uberaba. Nas duas primeiras visitas não veio nada, mas na terceira tudo mudou. “Mãezinha, o que se perdeu foi o retrato que um dia, em verdade, deveria desaparecer”, dizia José Roberto na primeira carta que mandou, em 29 de setembro de 1973. Outras 20 seguiriam. “Não queira morrer para reencontrar-me porque eu prossigo vivendo. Estamos juntos, só que de outra forma”, reiterou. Lucy voltou a sorrir, continuou retornando a Uberaba por duas décadas atrás de notícias do filho e sempre foi atendida.
“O Chico é tudo na minha vida”, diz ela. “Nunca vi alguém como ele e nunca verei mais.” A católica Lucy passou a frequentar centros espíritas com afinco e a trabalhar nas obras sociais ligadas à religião, tanto em São Paulo quanto em Minas Gerais. No começo da década de 90, parou de visitar Uberaba.
“A gente já tinha tanto, não queria pegar o lugar de mães que iam sempre e nunca recebiam nada.” Hoje, a saudade que mareja os olhos azuis de Lucy não é mais só do filho e do marido, que já morreu – ela inclui Chico Xavier.
Ampliar o conceito de família, passando a cuidar de outros filhos, de pessoas que não eram sangue de seu sangue, é o que une a trajetória das mães que receberam mensagens de seus filhos por meio de cartas psicografadas por Chico Xavier. “Só há uma maneira de sair inteiro de uma tragédia como a nossa: esquecer um pouco de si e tentar fazer a vida ao redor ser um pouco melhor. A energia que recebo das pessoas que ajudo me alimenta”, conta a professora mineira aposentada Célia Diniz, 60 anos, que perdeu dois filhos e cuja história inspirou uma das personagens no filme “As Mães de Chico Xavier” (leia o perfil dela e de outras mães ao longo desta reportagem). Coordenadora do laboratório de estudo sobre o luto da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Maria Helena Franco reconhece o uso das mensagens psicografadas como uma maneira de viver o luto. “Se tem sentido para elas, é digno de estudo para nós”, afirma. Mas a preocupação nunca será a de descobrir se as mensagens são ou não verdadeiras. “O que nos impele a estudar o fenômeno são as motivações das pessoas que vão até os centros espíritas atrás de mensagens
psicografadas.”
Até os anos 90, Chico Xavier demonstrava uma disposição impressionante nas reuniões públicas de psicografia do Grupo Espírita da Prece, que ele fundou em Uberaba. As sessões ocorriam nas noites de sexta-feira e sábado e eram presenciadas por cerca de 500 pessoas – sentadas, debruçadas na janela e em pé ao redor da casa. Os trabalhos tinham início com a leitura de trechos do “Livro dos Espíritos” e do “Evangelho Segundo o Espiritismo”, do criador da doutrina espírita, Allan Kardec. A psicografia começava às 20h e seguia até as 4h. Chico colocava no papel cerca de dez mensagens por dia – algumas de até 70 páginas, segundo Nobre, da AME–BR. “Ele fazia questão de ler carta por carta e entregá-las aos familiares. Ao final da sessão, ainda contava causos, abraçava as pessoas e fazia graça com o próprio sofrimento”, conta o empresário Geraldo Lemos Neto, 49 anos, amigo que auxiliou Chico em suas reuniões entre 1985 e 1991. Segundo Neto, que hoje administra a Casa de Chico, um centro de referência sobre a vida do médium mineiro em Pedro Leopoldo. Todo ano o líder espírita fazia questão de psicografar uma mensagem endereçada às mulheres no Dia das Mães. Sabia que, às mães, reconhecer um filho em suas cartas era acreditar de uma vez por todas que a vida continua, que o amor segue existindo, mas a morte não. Ao proporcionar a elas a alegria de ter o filho de volta pela psicografia, o mineiro injetava poesia no coração das mulheres, tal como seu xará carioca,
de sobrenome Buarque.
“Ele ajudou, mas minha vida perdeu a cor" |
No primeiro encontro com Chico Xavier, Neusa não recebeu mensagem do filho. Mas ela insistiu. Lembrava que, uma semana antes de morrer, Antônio havia contado que sentia sua morte se avizinhar. Seria sinal de maturidade espiritual? Talvez. A confirmação viria quatro meses depois, em fevereiro de 1985, quando o filho se comunicou através do médium de Uberaba. “Você é a rosa da minha vida”, leu Chico Xavier, em carta endereçada à Neusa. Naquele momento, a mãe teve certeza de que a mensagem era dele. “Quando ainda era vivo, escolhi uma rosa e disse para mim mesma que ela o representaria”, lembra. Era muito mais prova do que ela precisava para legitimar o contato, que se estendeu por mais alguns recados psicografados por outros médiuns, na época único alento para a dor que sentia.
Hoje Neusa já não lê mais as cartas do filho – a lembrança machuca mais do que conforta. Sai pouco do apartamento onde vive, a algumas quadras de onde Antônio foi morto, diz ter perdido a vaidade, embora continue uma senhora distinta e cuidada, e não consegue cantar parabéns nem nas festas dos netos.“O espiritismo foi o único lugar onde tive respostas”, afirma. “Ajudou, mas minha vida perdeu a cor”, resigna-se, observando um porta-retratos com a imagem do filho. “Um dia nos reencontraremos”, diz, convicta.
0 comentários:
Postar um comentário