Chico Xavier foi capa de duas publicações esta semana. A Revista Época estampou o médium em sua capa e produziu uma matéria que conta toda a trajetória do médium e aborda os fatos marcantes de sua vida. A edição ainda apresenta uma entrevista com Nelson Xavier, ator que interpreta Chico em sua fase madura no longa-metragem Chico Xavier, o filme.
Já a a revista Istoé trouxe em sua edição um caderno especial sobre o centenário de Chico Xavier, festejado com produções no cinema, no teatro e na literatura . A matéria, dividida em duas partes, concentra-se também na cine-biografia de Daniel Filho que tem data de estréia marcada para o dia 02 de abril de 2010
Oito anos depois de sua morte, o mito do médium mineiro está vivo, forte e será renovado por uma onda de filmes que celebram o centenário de seu nascimento. O que explica essa popularidade?
Martha Mendonça, de Pedro Leopoldo e Uberaba. Com Leopoldo Mateus, Mauricio Meireles
PSICOGRAFIA
O ator Nelson Xavier como Chico, em cena do filme que será lançado no mês que vem. O espiritismo ganha as telas
Como se explica que um homem pobre, doente e semi-instruído, nascido mulato no início do século passado, em um rincão distante de Minas Gerais, viesse a se tornar, ao longo de seus 92 anos de vida, e sobretudo depois dela, uma espécie de mito brasileiro – um nome capaz de emocionar, motivar e organizar as pessoas em torno de uma fé e do trabalho filantrópico que ela inspira? O que havia na personalidade e nas ideias daquele homem careca, estrábico, sempre de peruca e óculos escuros, que se expressava com a fala pausada e amanteigada dos mineiros, capaz de sobreviver a sua morte em 2002 e transformá-lo em objeto de culto, de estudo e de interesse crescente dos meios de comunicação? Por que o celibatário ao mesmo tempo doce e obstinado, que se dizia capaz de conversar com os mortos e foi perseguido e ridicularizado por isso, conseguiu expressar tão bem a alma brasileira a ponto de tornar-se, ele mesmo, um ícone popular e uma figura respeitada mesmo entre aqueles que não compartilham de suas polêmicas convicções?
As respostas a essas perguntas, se elas existirem, talvez surjam no decorrer deste ano, quando se celebra, com uma onda de filmes, o centenário de nascimento de Chico Xavier, o médium mais conhecido do mundo e uma das personalidades mais queridas dos brasileiros.
No dia 2 de abril, data de seu nascimento em 1910, estreará Chico Xavier – O filme. Baseado no best-seller de Marcel Souto Maior, As vidas de Chico Xavier, e dirigido pelo blockbuster Daniel Filho, o longa-metragem vai ocupar 300 salas, promete lotar os cinemas e apresentar ao grande público (sobretudo aos jovens)uma história que, se fosse roteiro de ficção, seria classificada de inverossímil. Ou, no mínimo, exagerada. Garoto pobre do interior perde a mãe aos 5 anos, é maltratado na infância e começa a ver espíritos; escreve livros que seriam ditados por grandes nomes da literatura já mortos e ganha projeção nacional ao psicografar mensagens de pessoas que já morreram para parentes inconsoláveis. Lança mais de 400 obras literárias, que vendem 50 milhões de exemplares – mas doa tudo para a caridade. Sem boa saúde, trabalha sem parar e vive de seu salário do Ministério da Agricultura até morrer. Sem ser católico, vira quase um santo.
LADO HUMANO
O filme que conta sua vida – e tem Ângelo Antônio e Nelson Xavier vivendo o médium em duas fases – não será o único a estrear neste ano. Pelo menos outras quatro produções ligadas ao espiritismo – e ao médium – devem abocanhar boa bilheteria, inaugurando uma onda espírita no cinema nacional e popularizando ainda mais sua figura. Pode-se dizer que o trailer desta grande tendência foi Bezerra de Menezes – O diário de um espírito. No fim de 2008, o filme, com roteiro ruim e arrastado, levou aos cinemas mais de 300 mil espectadores ao mostrar a trajetória do chamado Médico dos Pobres, outro ícone da religião de Chico Xavier. A explicação: a força do espiritismo no país, que teria, de acordo com a Federação Espírita Brasileira (FEB), cerca de 20 milhões de adeptos. Agora, novos filmes de alguma forma ligados ao médium estão para ser lançados (leia o quadro na próxima página). Um deles tem potencial especial para o sucesso: Nosso lar, de Wagner de Assis, baseado no livro mais vendido de Chico, promete efeitos especiais feitos no Canadá, reproduzindo o cenário da vida no além, foco dessa obra que relata o lugar para onde iriam os espíritos depois da morte.
Chico Xavier sempre foi um campeão de audiência. Em 1971, ele participou do programa Pinga-fogo, numa entrevista que deixou 75% dos televisores brasileiros ligados na TV Tupi. No Natal daquele mesmo ano, uma nova participação do médium foi veiculada por um pool nacional de quatro emissoras. Chico ganhou uma projeção que o mineirinho de Pedro Leopoldo, filho de mãe lavadeira e pai vendedor de bilhetes de loteria, ambos analfabetos, jamais conseguiria imaginar. Em 2000, foi eleito O Mineiro do Século, numa promoção da TV Globo local. Em 15 dias, 2,5 milhões de pessoas escolheram seu nome, por meio da internet e do telefone. Em 2006, ÉPOCA fez uma pesquisa entre os leitores sobre quem seria O Maior Brasileiro da História. Para votar, por meio do site, havia opções como Ruy Barbosa, Getúlio Vargas, Pelé e Ayrton Senna – além da opção Outros. Chico Xavier ficou em primeiro, com 36% dos votos, quase o dobro do segundo colocado, Senna. Todos os seus votos foram escritos na lacuna em branco – um resultado que mostra a admiração dos brasileiros por sua figura ao mesmo tempo paternal e misteriosa.
Cartas psicografadas por Chico Xavier ajudaram a absolver em julgamento duas pessoas acusadas de assassinato. O que isso revela sobre o país?
“Queremos pisar no chão em que ele pisou”, diz a dona de casa paulistana Alita Polachini, de 56 anos. Acompanhada do marido, o empresário Renato, ela passou três dias da semana passada em Pedro Leopoldo, de 60 mil habitantes, visitando a praça que leva seu nome, a fazenda onde ele trabalhou e conversando com gente que o conheceu. À noite, o casal assistiu à reunião pública do Centro Espírita Luiz Gonzaga, que ele fundou em 1927. Entoaram os cânticos ao médium, ouviram palestra que tratava, entre outras coisas, dos ensinamentos espíritas do filme Avatar – e choraram. “Tudo o que se refere ao Chico me faz chorar. Não sei explicar. As lágrimas só descem”, afirma Alita. A 500 quilômetros dali, em Uberaba, no Triângulo Mineiro, cidade que Chico adotou a partir de 1959, um ciclista solitário reverencia seu mausoléu. “Não sou espírita. Mas venho aqui sempre que quero um pouco de paz”, diz o professor de literatura Adaílton Oliveira, de 33 anos. Muita gente faz o mesmo. Deixam bilhetes presos no vidro de seu túmulo. Ligam para os centros das duas cidades pedindo ajuda, cura, dinheiro, amor. Ou apenas querem falar com alguém que o tenha conhecido.
Por que o mito Chico Xavier só cresce, mesmo depois de sua morte? Por si só, o espiritismo gera curiosidade, mesmo entre não adeptos. Organizada no século XIX pelo francês Allan Kardec, a doutrina afirma que o espírito segue uma linha evolutiva através de sucessivas reencarnações. A vida na Terra seria um aprendizado para a eternidade. O espiritismo também é uma religião que não impõe obrigações nem lista pecados. O que se faz em vida é o que se leva dela para as próximas existências. Com Chico Xavier, “porta-voz do além”, como era chamado, o mundo da morte – maior mistério da vida – nunca pareceu tão próximo, tão claro e, de certa forma, confortável. A ideia de que a vida não acaba de fato, de que há alguma coisa do lado de lá, acalmou corações e arrebatou almas vivas. Com as cartas que dizia escrever em nome dos espíritos, Chico não só demonstrava aos olhos dos crentes a continuidade da existência, como oferecia uma forma de comunicação direta com o mundo dos mortos. O fascínio que essa ousada proposição exerce sobre a mente humana, atormentada pela finitude, não pode ser subestimado. Mesmo os gregos, cuja imaginação mitológica parece não ter tido limites, foram incapazes de supor a comunicação com o mundo subterrâneo. Pensavam que os mortos chegariam à margem do Rio Aqueronte, dariam um óbolo ao barqueiro Caronte, cruzariam para o Hades e nunca mais seriam vistos. Ou ouvidos. Viveriam apenas na memória dos vivos. E esses na dor inconsolável.
Ao atrevimento teológico do espiritismo, Chico somou algo que parece ser uma das características persistentes da cultura brasileira, o sincretismo
Ao atrevimento de invocar os mortos, Chico somou algo que parece ser uma das características mais persistentes da grande cultura brasileira: o sincretismo. Ao adotar o modelo monástico de obediência, pobreza e castidade, ele promoveu a aproximação entre a fé espírita e os preceitos católicos. Com isso, afastou o espiritismo do mundo dos demônios, tranquilizou os adeptos, abafou confrontos com a Igreja e – acima de tudo – criou para o espiritismo um amplo espaço de crescimento em um país profundamente identificado com a mensagem de tolerância e caridade do cristianismo. A intuição e a inteligência de Chico na construção de sua doutrina – e na prática de sua existência – ajudam a explicar o crescimento de seu prestígio mesmo agora, oito anos depois de sua morte. É o que diz a autora da tese Espiritismo à brasileira, a antropóloga Sandra Stoll, da Universidade Federal do Paraná. “A santificação pós-morte de Chico Xavier é uma prática corrente nos meios populares e não briga com a modernidade”, afirma. “As religiões se renovam, incorporando ideias, valores, símbolos e tecnologias e atendem a demandas modernas de diversos modos. O culto a Chico Xavier se insere aí.”
HOMENAGEM
O professor Adaílton Oliveira no túmulo de Chico em Uberaba. Mesmo quem não é espírita, como ele, cultiva a memória do médium.
O interesse pelo médium ultrapassa as fronteiras. Neste ano, um volume de 50 obras suas está sendo lançado em russo. A curiosidade em torno de Chico Xavier está levando aos Estados Unidos um de seus biógrafos, Carlos Antônio Baccelli. Autor do recém-lançado 100 anos de Chico Xavier, ele vai a três cidades realizar workshops sobre o brasileiro. “Querem saber tudo sobre a obra e a vida. O interesse aumentou depois que ele desencarnou”, afirma Baccelli, que também é médium, conviveu com Chico por duas décadas em Uberaba e faz um trabalho social reconhecido na cidade. Palestrantes espíritas brasileiros conhecidos no exterior, como Divaldo Franco e Raul Teixeira, estão pautando seus trabalhos deste ano na vida de Chico Xavier. Uma biografia está sendo lançada na França. O 3º Congresso Espírita Brasileiro, que acontecerá em abril, teve recorde de inscrições de estrangeiros. “Ele é, de fato, uma referência espírita e religiosa em todo o mundo”, afirma César Perri, diretor da FEB.
A repetição das histórias sobre Chico é uma das explicações para a perpetuação de seu mito. Palestrantes internacionais falam de seus feitos. Amigos e parceiros das cidades em que ele viveu reproduzem dons e “causos” à exaustão. “Você sabia que ele materializava perfume?”, perguntam os amigos. “Ele sempre dizia que morreria num dia de muita alegria e acertou: desencarnou no meio das comemorações pelo pentacampeonato do Brasil na Copa do Mundo”, contam. “Chico sempre dizia: eu não sou nada, sou apenas um Cisco de Deus. Cisco Xavier”, afirmam. Percebe-se não só os mesmos relatos, mas ainda uma repetição de vocabulário e um ritmo parecido na narrativa. É como se estivesse sendo construída, pela tradição oral e pelos livros – e agora pelos filmes –, uma espécie de Evangelho de Chico Xavier, capaz de levar suas palavras e sua obra para além de sua existência. Nos museus dedicados ao médium, nas duas cidades onde viveu, as lendas de Chico se misturam a seus pertences, muitos mantidos intactos, do jeito que ele deixou. A coleção de chapéus, os ternos, as centenas de fotografias de amigos em porta-retratos e nas paredes. Parecem relíquias sagradas, algo que o espiritismo, na origem, não prevê – assim como regras, dogmas ou qualquer hierarquia religiosa.
EM CENA
O diretor Daniel Filho entre os atores Nelson Xavier (à esq.) e Ângelo Antônio.
Dois momentos da vida de Chicohttp://content-portal.istoe.com.br/istoeimagens/imagens/mi_272710393125004.jpg
A apropriação de preceitos cristãos e a forma como tocou a própria vida, trabalhando pelos mais pobres numa existência sem nenhum luxo, levou Chico Xavier a suplantar a barreira das religiões. Ganhou admiradores de fé católica e teve umbandistas batendo cabeça ao vê-lo. De sua parte, não discriminou ninguém pela crença ou mesmo pela opção sexual. Foi firme contra o aborto, mas enalteceu a invenção da pílula anticoncepcional. Jamais foi unanimidade – e nem é hoje. O pastor Antonio Mesquita, presidente do Conselho de Comunicação da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil diz que os evangélicos condenam o espiritismo. “Evitamos falar sobre esse assunto para que todos possam viver em paz, mas várias passagens na Bíblia mostram que a comunicação entre os homens e os mortos não é possível”, diz. “Não questionamos seu trabalho social, mas não existe nenhuma prova concreta de que ele realmente fazia comunicação com os mortos”, afirma o cético militante e fundador da organização Ceticismo Aberto, o analista de sistemas Kentaro Mori. Na Igreja Católica, para onde acorrem muitas pessoas que são também espíritas, Chico é visto “com carinho” (sobretudo por sua obra social), mas, ao mesmo tempo, como alguém com quem seria impossível haver conciliação teológica. “Há uma incompatibilidade nevrálgica com os espíritas”, diz o teólogo Fernando Altamyer, professor da PUC de São Paulo. “Eles acreditam em reencarnação. Os cristãos acreditam em morte e ressurreição. Não há como acomodar essa diferença teórica, embora as práticas possam ser semelhantes.”
A obra de Chico
Os trabalhos e os livros do médium, em números
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A perpetuação do mito Chico Xavier não só continua após sua morte, como, em alguns aspectos, acontece graças a ela. No meio espírita, acredita-se que ele tenha sido a reencarnação de Allan Kardec. Teria voltado para complementar e popularizar seu primeiro trabalho – e existiria a possibilidade de ele retornar. Em torno disso, aliás, cresce mais uma camada do mistério que reveste sua figura. Chico teria deixado com três pessoas uma espécie de senha para que identificassem possíveis mensagens suas do além. Seu filho adotivo, o dentista Eurípedes Higino, de 59 anos, é uma delas. “Recebemos mensagens todas as semanas, mas até hoje não disseram as palavras secretas”, afirma. Pelo menos 50 médiuns brasileiros já disseram receber o espírito de Chico Xavier. Da mesma forma que outros filhos e pais que, por meio de Chico Xavier, acreditaram receber palavras de consolo de seus parentes mortos, Eurípedes anseia por conversar com seu pai. “Tenho muita saudade de nossas conversas ou simplesmente de sua presença. Mas é bom saber que divido isso com milhões de pessoas”, diz. Enquanto essa hora não chega, a ansiedade cresce.
Há quem queira, neste centenário, encontrar não o mito, mas a trajetória do homem Francisco Cândido Xavier. Entre eles, Célia Diniz, presidente do Centro Espírita Luiz Gonzaga, em Pedro Leopoldo. Amparada por voluntários e colaboradores, ela está construindo um memorial que resgata imagens, objetos e histórias não conhecidas. “Não é um trabalho fácil. Aqui, onde ele nasceu, para quem o conheceu ele é apenas o Chico. O rapaz doce, o vizinho, o filho do Seu João”, diz Célia, professora cujo pai foi colega de trabalho do médium na fazenda-modelo. Ao perder dois de seus três filhos, ela foi confortada por Chico e tem crença inabalável no espiritismo. Mas sente mais falta do amigo, a quem ajudou incessantemente no trabalho social, de quem ouvia declarações da mais fina ironia. “Chico era extremamente bem-humorado. Contava piadas, era rápido nos trocadilhos. Nunca estava sisudo, tinha sempre um leve sorriso, mesmo nas horas mais difíceis”, afirma. O lendário bom humor de Chico Xavier é outra das razões que explicam seu carisma. Mesmo diante da morte ele fazia piadas. Diz-se que uma vez, voando de avião em meio a uma tempestade, ele se pôs a gritar em pânico. Seus acompanhantes, incrédulos, perguntaram se ele, entre todas as pessoas do mundo, tinha medo de morrer. “Medo não tenho, mas também não tenho pressa”, disse o médium.
Ao longo da vida, ele foi muitas vezes desacreditado em relação a seus feitos mediúnicos. Só não se pode duvidar do bem que ele fez. Estima-se que tenha criado ou ajudado a criar pelo menos 2 mil instituições de caridade no Brasil, graças à venda de seus livros e doações de pessoas que o admiravam. Milhões de famintos comeram sua sopa semanal por décadas. Chegou a distribuir 1.000 sopas por dia. Crianças ganharam presentes, jovens foram capacitados profissionalmente. Seus centros tinham filas que dobravam quarteirões. “Ele foi o verdadeiro Fome Zero. Mas o amor dele era o maior alimento que as pessoas poderiam ter”, diz Neuza de Assis, de 62 anos, grande amiga e colaboradora em Uberaba. No chamado Abacateiro, uma casa da periferia da cidade que ele usava como base para a distribuição de alimentos, Neuza relembra a felicidade das pessoas que trabalhavam com ele. “Chico mudou a vida de todo mundo, de quem recebia e de quem dava”, afirma.
Roteirista de Chico Xavier – O filme, Marcos Bernstein, que também escreveu o premiado Central do Brasil, diz que esse foi seu trabalho mais difícil. “Como fazer uma adaptação, de tempo limitado, sobre uma vida tão longa e tão rica? O que privilegiar? Acabamos centrando no ser humano”, diz. Ao mergulhar em sua história, Bernstein afirma ter descoberto um homem que soube, mais do que falar com os mortos, se comunicar de verdade com os vivos. “Ele soube dar paz às pessoas”, afirma. A polêmica não foi deixada de lado. No filme, um dos pontos centrais é a história da carta escrita por Chico que serviu de prova de defesa num caso de assassinato. Em 1976, o jovem Maurício Garcez, de 15 anos, morreu com um tiro disparado pelo amigo José Divino Nunes, de 18. Chico escreveu uma carta, que teria sido ditada pelo espírito do morto, afirmando que havia sido um acidente, uma brincadeira – exatamente como afirmava o réu. Diante dos detalhes apresentados e da semelhança da assinatura, o juiz proferiu a sentença absolvendo José Divino. O caso já foi mostrado de forma dramatúrgica em 2004 no extinto programa Linha direta, da TV Globo – e bateu recordes de audiência. Agora, nesse longa-metragem, Christiane Torloni e Tony Ramos vivem os pais do rapaz morto, com seu sofrimento e suas dúvidas sobre o fenômeno.
Daniel Sottomaior, presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, é um dos que criticam veementemente esse episódio. “Lamento que esse tipo de mentalidade tenha penetrado o Estado brasileiro”, afirma. “Cartas psicografadas como prova judicial solapam a base da democracia moderna, que é a separação entre Estado e religião. É muito grave.” Marcel Souto Maior, autor da biografia mais vendida de Chico Xavier, que serviu de base para a produção do filme, garante que discordâncias como essa não foram empurradas para baixo do tapete. “O filme tem polêmica, confronto. Não endeusa Chico. Não é chapa branca”, afirma.
Chico Xavier, contam amigos, costumava dizer que duas coisas o constrangiam: espírito obsessor (que se ocupa de causar transtornos entre os vivos) e jornalista. Não era à toa. Na primeira fase de sua vida, foi ferrenhamente perseguido por repórteres cujo objetivo era desmascará-lo. Em 1935, Clementino de Alencar, de O Globo, foi a Pedro Leopoldo ver de perto o rapaz franzino, já doente do pulmão e meio cego pela catarata, cuja mão, diziam, era controlada pelos espíritos, dando forma a poesia e prosa de primeira. Fez testes e questionários. Em sua reportagem, depois de meses na cidade, contou que obteve respostas de economia e política, algumas em inglês, que teriam sido sopradas pelos espíritos ao rapaz. Foi embora se dizendo ex-cético, mas perdeu credibilidade diante dos colegas de profissão. Em 1944, David Nasser, da revista O Cruzeiro, também esteve na cidadezinha. Depois de se passar por repórter estrangeiro para obter uma entrevista do já traumatizado Chico, deixou um dos melhores textos sobre ele na reportagem “Chico Xavier, detetive do além”. “Não nos interessa, embora possa parecer estranho, o médium Chico Xavier, mas sua vida. Seus trabalhos psicografados – ou não psicografados – já foram assuntos de milhares de histórias”, escreveu. “Se são reais ou forjadas, decidam os cientistas. Se ele é inocente ou culpado, dirão os juízes. Mas se ele é casto, instruído, bondoso, calmo, diremos nós. Porque não somos detetives do além.” Quase 70 anos depois, a lógica de Nasser pode ser adaptada. Se Chico Xavier falava com os mortos ou não, é uma questão de fé. O fato que interessa mostrar, entender e explicar é a força do homem comum que se tornou um mito brasileiro.
Nelson Xavier
“Foi o trabalho mais importante da minha vida”
Nelson Xavier
No longa-metragem Chico Xavier, o filme, Nelson Xavier vive o médium mineiro em sua fase madura. O envolvimento com o filme e a vida do maior símbolo do espiritismo no Brasil mudaram sua vida, ele garante. O ator, que, apesar do sobrenome, não tem nenhum parentesco com Chico, se emociona e chora sempre que fala da experiência, que começou com passeios pelas cidades de Pedro Leopoldo e Uberaba e boas conversas com os amigos de Chico Xavier.
ÉPOCA – Você já viveu personagens fortes, entre eles Lampião. Como foi fazer o papel de Chico Xavier?
Nelson Xavier – Emocionante desde o começo. Há seis anos, recebi de Marcel (Souto Maior) a biografia que ele escreveu. Junto, vinha um bilhete dizendo que gostaria de que, se um dia o filme fosse feito, eu interpretasse Chico. Fiquei impressionadíssimo com a história deste homem e percebi que havia sido omisso por saber tão pouco sobre ele. Quando li notas no jornal de que o filme seria feito, corri atrás e disse ao Daniel Filho que queria o papel. Dois anos se passaram, e o convite finalmente veio. Quando o trabalho começou e passei dias nas cidades que ele morou, com seus amigos, eu chorava o dia todo. Forte demais. Passei a atribuir essa emoção incontrolável à presença de Chico junto a mim.
ÉPOCA – Que recordações você tem das filmagens?
Nelson Xavier – Além dessa emoção à flor da pele, alguns encontros incríveis, como Célia, de Pedro Leopoldo (presidente do Centro Luiz Gonzaga, fundado por Chico), que me deu ótimos conselhos sobre o comportamento de Chico, Neuza, de Uberaba, uma mulher muito tocante que sempre o ajudou na obra assistencial. Também estive com Cidália, irmã de Chico já muito velhinha. Ela foi ao cabeleireiro e me recebeu toda arrumadinha. Depois perguntou se, já que temos o mesmo sobrenome, eu gostaria de ser parente dela!
ÉPOCA – Você nunca teve ligação com o espiritismo?
Nelson Xavier – Nunca fui religioso. Mas o irônico de tudo isso é que minha mãe era espírita e passou a vida toda sugerindo que eu lesse os livros de Chico, em especial o Nosso lar. Mas eu não me interessava, estava focado em outras coisas, desconversava. Agora essa experiência mudou minha vida.
FONTE:
http://www.febnet.org.br/site/noticias.php?CodNoticia=207