A Vitimização da Incompetência
Brilhe a vossa luz!
Jesus
Quando Sócrates disse há 2500 anos que ele era o mais sábio de todos, porque era o único sábio que sabia que nada sabia, não estava adotando uma postura de humildade postiça, de autoflagelação… Ao contrário, estava nos dando uma lição milenar de uma atitude existencial que é a única que nos leva à superação de nossas limitações e à transcendência de nós mesmos.
Sua fala queria indicar que o verdadeiro sábio (e para ele o sábio era sereno e feliz, porque sua sabedoria não poderia lhe ser tirada) é aquele que se põe em permanente disponibilidade para aprender. Que considera natural não saber tudo. Que indagar, procurar, dispor-se a achar a verdade, é um movimento natural, saudável e nunca humilhante. Ao contrário, aquele que se jacta de já saber tudo ou estaciona à beira da própria ignorância está fazendo ridículo de si mesmo.
Essas reflexões me vêm à mente quando sou defrontada com o discurso que chamarei aqui de “vitimização da incompetência” ou da “desculpa da incapacidade”. O que é isso?
O indivíduo percebe que não desenvolveu determinado conhecimento ou não aperfeiçoou certa habilidade (seja cognitiva, técnica, artística ou mesmo moral). Ao invés de fazer coro com o maior filósofo de todos os tempos e dizer bem-humorado: só sei que nada sei, e portanto vou me colocar ao encalço da sabedoria… vou me esforçar por desenvolver esta ou aquela habilidade…, revolta-se contra si, contra a vida e contra outros, esperneando como criança mimada e arranjando inúmeros desculpismos. “Não tive a mesma oportunidade que outros, não sou capaz, não consigo, está além de mim!” Na mesma onda de revolta e lamentação, pode partir para o ataque até mesmo dos que ama, dizendo que o outro consegue porque tem vantagens que ele não tem. O outro teve tais ou tais privilégios, recebeu tal ou qual educação, possui este ou aquele dom inato ou, simplesmente “nasceu com a bunda virada para a lua”!
Esse atestado de incompetência assumida pode à primeira vista parecer um sintoma de baixa autoestima. E poderia ser. Mas o que se esconde de fato atrás de uma explosão destas, que acaba por imobilizar aquele que a faz e ainda faz respingar agressão para o outro que está seguindo seu caminho, tranquilamente, desenvolvendo suas competências do jeito que sabe, que pode e que quer?
Em minha opinião, falta exatamente aquela atitude socrática, bem-humorada, leve e graciosa, que faz com que a pessoa se meça com honestidade e naturalidade, avaliando a si mesma e procurando com afinco, perseverança e… humildade, o que lhe falta em habilidades intelectuais ou morais. Ou seja, o problema talvez não seja baixa autoestima, mas na verdade, orgulho…
Dói sair da zona de conforto, dói reconhecer que aquilo que somos só devemos a nós mesmos e que não podemos nos considerar vítimas do universo, imobilizando-nos nesse papel. Sim, sim, temos influência da educação, temos limites herdados de infâncias mal vividas, temos traumas passados, temos bloqueios inconscientes em relação a certas coisas – mas só depende de nós a vontade férrea de nos libertarmos, de avançar, de buscar com sofreguidão e empenho o desenvolvimento integral de nossos espíritos.
Se contemplamos alguém que está à frente de nós nesse ou naquele quesito, tenhamos a humildade de aprender com ele, admirando-lhe a capacidade, que certamente conquistou com esforço e sacrifício, e ofereçamos algo em troca que ele talvez não possua. Não nos sintamos humilhados se o outro nos exceder em alguma competência, ao invés, esforcemo-nos por adquiri-la! Senão, poderemos ser contaminados pelo orgulho ferido ou, pior, pela inveja do talento alheio!
Existe ainda outra atitude que pode ser um disfarce negativo para essa confissão de incapacidade. É quando a pessoa passa a querer competir com o outro que lhe é superior numa determinada competência: a competição pode vir acompanhada de um esforço real de melhoria (o que já é menos mal) ou simplesmente de desfazer o que o outro está fazendo e tentar sobrepor-se ou insinuar-se sem ter de fato desenvolvido a mesma habilidade que o outro. Estamos aí diante da inveja assumida.
Diga-se de passagem que qualquer pessoa que sabe fazer algo – por exemplo, cantar, escrever, desenhar, cozinhar, tocar um instrumento, falar uma língua ou no plano moral, ser generoso, exercer liderança, ser ativo – ou seja o que for – ela só será verdadeiramente sábia se também continuar exercendo aquela máxima de Sócrates. Não se importará de submeter seus talentos, seus trabalhos, suas atitudes, a uma crítica construtiva e permanente, procurando aperfeiçoar os talentos adquiridos, buscando ainda desenvolver outros!
Ou seja, basta entendermos, com elegância e naturalidade, que todos somos aprendizes da evolução e que podemos e devemos nos ajudar mutuamente nesse caminho, sem nos jactarmos do que já conquistamos e sem nos incomodarmos com a conquista do outro – e tudo irá bem. Todos poderão encontrar os próprios caminhos para o burilamento de si.
Toda essa discussão se enraíza perfeitamente na concepção socrática de ser humano. Para Sócrates, todos nós somos seres divinos e podemos realizar o parto de darmos à luz a nós mesmos. Portanto, partimos aqui do pressuposto de que todos podem, todos têm infinitas potencialidades a serem desenvolvidas…
Há que se fazer ainda um pequeno parêntese reencarnatório: é que, embora, sejamos todos divinos, trazendo sementes a serem desenvolvidas, e até árvores já crescidas de outras épocas, pode acontecer que numa dada vida, não nos seja permitido desabrochar algum talento específico (que às vezes até podemos tê-lo já altamente desenvolvido), justamente para termos a oportunidade de trabalhar outros setores de nossa personalidade. Então, também aí nos cabe reconhecer que podemos ter tesouros ocultos guardados mas que, por ora, ficarão apenas como intuições…
Por isso também é tão essencial a pessoa descobrir qual o seu projeto de vida, qual sua missão aqui e agora, para que o sentido de cumprir essa tarefa lhe traga bem-estar e satisfação. E trabalhar com afinco e dedicação para fazer desabrochar os talentos, as capacidades, relacionadas a essa missão. E tudo fica mais coerente, mais límpido, menos dolorido e mais certeiro!
Dora Incontri
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