COMO CHICO XAVIER AJUDOU O FILHO DE DATENA
Imagine os olhos afundados nas órbitas numa face disforme, vestindo uma pele cinzenta, como um personagem de filme de terror em preto e branco lá dos anos 1950. Cérebro transformado em pasta, como a própria vida misturada pela droga a outros espectros vagantes no lixo das ruas da cidade. Ruas que parecem caminhos para lugar nenhum, escondidas em meio a cortiços. Imagine feridas infectadas e ainda abertas, sobreviventes maltrapilhos. Imagine gente virando bicho como no romance kafkiano, que de ficção não tem nada.
Imagine um ente querido, deitado no seu colo, expressando a dor de milhões de almas de um purgatório real, aprisionado num quadro que mais expressa - se isso é possível - o sentimento retratado em "O Grito", do norueguês Edvard Munch, que pintou esse turbilhão de tormento, angústia e desespero em cores fortes há pouco mais de um século. Munch não conhecia o crack que queima vidas de famílias inteiras. Nem o terror do cheiro adocicado que brota de um cachimbo nojento, mergulhando o nada e a angústia nas entranhas de quem algum dia já foi normal. A destruição das veias, o apodrecer dos pulmões. A transformação do corpo em esqueleto. A mente vazia, perigosamente equilibrada num acorde de circo de pavores.
Reprodução da tela "O Grito", pintada pelo norueguês Edvard Munch em 1893 |
Só de revolver essas lembranças me sinto derreter como gelatina, escorrer feito a parafina de vela acesa, chacoalhar meu estômago, como se o vômito brotasse para então espirrar minha alma. Alma! No outro extremo da vida, mas ainda nesta mesma existência, essa alma quase nas trevas, que já se debatia às portas do inferno, teve um encontro de luz! Fugida da metrópole, foi encontrar nas bandas das Minas Gerais um desses homens que parecem brotar em meio à violência e à maldade dessa nossa espécie, que vagueia incerta pela história e que desceu das árvores para talvez rumar, decidida, à extinção pela soberba perante Deus.
Chico Xavier em seus últimos anos de vida |
Esse homem franzino, uma figurinha aparentemente frágil, humildemente encolhido num paletó que dançava largo no corpo doente. Um corpo que, juro, há muito parecia já não estar mais aqui. Mistura de Gandhi, que respondia a insultos físicos e psicológicos com amor e não-violência, e madre Teresa de Calcutá, que sob o manto simples e surrado abrigava galáxias inteiras de miseráveis.
Foi num almoço que o dono da alma desesperada tocou a mão desse verdadeiro raio de esperança, espetacularmente aprisionado numa massa pequena, como um buraco negro engolindo energia infinita que brota do criador. Um ser tão doce, que curou milhares e que confortou outros tantos, sendo mensageiro divino. Desencarnados em garranchos letrados, escorregados em papel como psicografados sopros de vida para quem continuava aqui... E, quando um tocou o outro, pareciam um só. Mesmo cansado, o homem pequenino de repente virou um Atlas a sustentar nas costas a dor do mundo, sugando em segundos os medos causados durante tantos anos no outro pela droga que, acreditem, nunca mais usou depois daquele aperto de mãos sem palavras. Foi como se um pesado casaco de pele fosse retirado num escaldante verão: um sabor refrescante de mergulho gelado na cachoeira da salvação.
Foi no almoço do Vicente com Chico Xavier, poucos meses antes da passagem do Mestre para o plano definitivo (onde, acredito, sempre esteve), que aconteceu a cura definitiva do meu adorado filho.
A partir do Jornal Diário de S.Paulo. Leia no original
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